Quinta da Pacheca | O que era, naquilo que é, mas já não vai ser
"O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho, fica a cepa a sonhar outra aventura..." Miguel Torga
O livro "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera foi publicado pela primeira vez em 1984 com traduções para as línguas inglesa e francesa. Em 1985, o trabalho é lançado pela editora Gallimard, em França, sendo imediatamente proibido na Checoslováquia, terra natal do autor até 1989.
Este "embargo" deveu-se a referências à liberdade individual, ao existencialismo e a críticas à opressão política (já agora viva o 25 de Abril!!!), o que representava uma ameaça à narrativa oficial do governo comunista. Para além deste lado mais político do livro, nele encontrámos também a descrição das vidas de quatro personagens, explorando os temas filosóficos da leveza e do peso.
As suas páginas são uma autêntica viagem pela vida, história e filosofia, com reflexões profundas sobre as escolhas que fazemos ao longo da nossa existência. Termina com uma conclusão aparentemente estranha: todos nós temos a necessidade de ser olhados. E é a maneira como queremos ser olhados, que nos coloca num de quatro grupos.
O primeiro procura uma multidão de olhares anónimos: o olhar do público. São as estrelas: os cantores, os actores e os apresentadores. São muito vulneráveis pois estão dependentes da moda, da juventude e de uma certa aleatoriedade cultural. Fazem parte do segundo conjunto aqueles que precisam incessantemente do olhar da sua cara-metade.
A sua condição é tão frágil quanto a das pessoas do primeiro grupo, porque depende da presença de alguém que pode desaparecer. Se os olhos de quem amam se fecham, a sala que é a sua vida, fica, para sempre, mergulhada na escuridão. A terceira categoria é bem mais rara. São aqueles que necessitam de viver sob os olhares imaginários de seres ausentes. Estes são os sonhadores.
São aqueles que acreditam que os que já partiram continuam a observá-los bem lá do alto. Provavelmente estes são os mais felizes, porque o olhar desses seres queridos e ausentes só "desaparecem" quando voltamos a estar com eles, do outro lado da vida. O quarto grupo, podia certamente reunir-se, frequentemente, na Quinta da Pacheca, mas desse tipo de "gente" ... falaremos um pouco mais à frente ;)
Na cada vez mais imponente Quinta da Pacheca, entre os vales do Douro, a história entrelaça-se com a inovação, criando um legado que ecoa desde 1738. Sob o olhar vigilante de Da. Mariana Pacheco Pereira, a propriedade floresceu, testemunhando a demarcação pombalina das vinhas e a modernização trazida por D. José Freire de Serpa Pimentel.
Nos dias de hoje, a quinta não apenas preserva sua herança ancestral, mas também abraça o futuro com fervor. As vinhas, testemunhas silenciosas de séculos, agora são palco de uma busca incessante pela excelência, impulsionada pela quarta geração da família Serpa Pimentel e pelos dinâmicos Paulo Pereira e Maria do Céu Gonçalves.
A visita de 2024 foi já a quinta. Visitámos a quinta enquanto namorados, depois de casarmos, depois do nascimento da Bia, depois do nascimento do Gui, e nesta vez mais recente. O que mais me impressiona é que apesar de já a conhecermos bem, é como se a visitássemos pela primeira vez, pois há sempre algo de novo e alguma coisa que já está projectada para o futuro. Sempre, sem manchar os valores e identidade do passado.
Neste cenário de genuína harmonia entre passado e presente, história e inovação, a Quinta da Pacheca posiciona-se como um autêntico farol no horizonte do Douro, iluminando não apenas as vinhas, mas também os corações daqueles que buscam uma experiência única, onde cada gole de vinho conta uma história e cada visita é uma jornada de descoberta.
Falemos então daquilo que por lá encontrámos nesta última visita. Começamos com um passeio pela adega e salas de barricas onde inspirámos todos os segredos sobre o processo de vinificação, desde a colheita das uvas até ao engarrafamento e estágio do vinho. No final, ficámos a conhecer o resultado de todo este processo através de uma prova de 4 vinhos.
O Pacheca Reserva Branco 2021 (91 pts. PVP: 39 €), de cor amarelada, exibia aromas de folhas de chá, esteva, pedregosidade, apontamentos cítricos, tosta e uma baunilha muito ligeira. Terminava longo, muito focado, complexo e com uma incrível frescura. Já Pacheca Vale de Abraão 2019 (94 pts., 60 €) é quanto a mim uma das melhores edições desta referência. De cor rubi-violeta densa, passa para o nariz muito delicado com notas violetas, acácia-lima, frutos do bosque em compota, pimenta preta e cacau. Na boca é fresco, equilibrado, complexo, ponderado, longo e incrivelmente persistente.
Nos Portos, o Pacheca Vintage 2019 (93 pts., 78 €) de porte rubi quase opaco, tem um nariz com ameixa preta, ameixa seca, frutos silvestres, alcaçuz, hortelã, resina e violetas. O palato exibe um belo equilíbrio entre pujança e elegância, é fresco e complexo. O último vinho em prova foi o Quinta da Pacheca 40 anos Tawny (96 pts., 200 €). Âmbar acobreado no copo, exibe notas de sultanas, caramelo, chocolate, nozes, pêra confitada e melaço. Na boca é super denso, rico e imensamente prazeroso.
No restaurante, o Chef Carlos Pires elabora uma ementa variada e tentadora, respeitando o conceito da cozinha tradicional portuguesa e utilizando os produtos típicos do Douro, os quais trabalha com muita inspiração. Quem esteve ao "leme" da cozinha nos dias que estivemos na Pacheca foi o Chef Luís Guedes, com muita atenção aos detalhes, temperaturas e tempo de serviço. É daqueles Chefes que tenho curiosidade acerca do que o futuro lhe reserva.
Nas entradas destacámos o Tataki de atum envolto em sementes de sésamo, foie-gras e puré de maça assada que promovia um bonito contraste entre o sabor suave, delicado e untuosamente maritimo do atum com a indulgência do foie-gras, enquanto que a maçã contribuía com uma acidez que unia tudo, e esse tudo cresceu com os morangos, framboesas, violetas, baunilha, frescura, equilíbrio e ligeira untuosidade do Pacheca Reserva Rosé 2022 (88 pts., 22 €); e a carne macia e suculenta da Bocheca de Porco estufada a baixa temperatura (confesso que me remeteu para os estufados da minha mãe) que encontrou uma bela companhia nas amoras, mirtilos, ameixas, cacau, complexidade, harmonia, persistência do rubi profundo Lagar nº1 Reserva Especial 2019 (94 pts., 75 €).
No peixe adorámos a maresia, riqueza aromática a notas tostadas do Robalo com cuscos transmontanos e carabineiro; e os caramelizados, terrosidade e salinidade do Polvo assado com cuscos de sépia e crocante de alga, que cresceu com o damasco, melão, papaia, lima, pedregosidade, frescura, leveza e precisão do Pacheca Reserva Rosé 2022 (88 pts., 22 €). Para quem gosta de cuscos transmontanos estes pratos são "visitas" obrigatórias.
Antes das carnes a apresentação do Gelado de frutos vermelhos, amêndoa e gengibre, servido em forma de corta sabores, demonstra que naquele restaurante nada é deixado ao acaso. O Magret de pato com puré de batata doce e legumes baby foi dos melhores pratos que comi na Pacheca, cheio de intensidade, harmonia, complexidade e sabor, muito sabor. Exigia um vinho à altura cheio de frescura, rusticidade e persistência. O Pacheca Grande Reserva Tinta Roriz 2019 (94 pts., 45 €) deu-lhe isso e ainda amoras, mirtilos, esteva, pimento e tosta.
Já o Naco de novilho, com puré de castanha, cogumelos cantarelos e demi-glace chegou à mesa para nos brindar com robustez, suculência, ligeira doçura, profundidade e intensidade que numa palavra se resumem em conforto.
Nas sobremesas foi onde detectei uma evolução maior, sobretudo ao nível da originalidade, densidade de sabor e pertença com autenticidade. Apesar do Mil folhas com frutos vermelhos e gelado de baunilha oferecer uma combinação de sabores delicados e texturas contrastantes, típicas da alta confeitaria francesa, o que verdadeiramente me conquistou foi a explosão de sabores da Torta de vinho do Porto com gelado de figos, figos secos, crumble de sementes e morangos. Para já é a sobremesa do ano, devido à bonita briga entre a leveza e delicadeza da torta com a riqueza e intensidade do vinho do Porto, sendo que o gelado de figos a acrescentava doçura, textura e fruta. Muito, mas mesmo muito bom!!!
Deixando a gastronomia de lado por breves momentos, escrevo-vos agora sobre o Ateliê d'Or, o mais novo espaço dedicado à arte que acaba de ganhar vida na Quinta da Pacheca, um local impregnado com a presença de Óscar Rodrigues, um artista nascido no coração do Vale do Douro. Esta proposta criativa oferece uma imersão completa nas artes plásticas, abrangendo uma ampla gama de expressões, desde cerâmica até pintura, e do azulejo à escultura.
Com desafios únicos e cativantes, os visitantes são convidados a esculpir em cepas de videiras antigas ou a expressar sua criatividade em telas. Nós experimentámos a Winearella, que consiste num workshop de pintura em que as tintas são construídas com vinhos da Quinta da Pacheca. Os miúdos adoraram, bem, para vos dizer a verdade, nós também! ;)
Seguiu-se um passeio de jipe pelos 51 hectares na quinta com prova de vinhos e almoço regional nas vinhas (devido à chuva, acabámos por almoçar num local com vista para as vinhas, mas abrigados;)). Durante o passeio exploramos a zona ribeirinha, onde foram plantadas 200 árvores em 2023, e também passamos por uma antiga ruína que está a ser reabilitada para sediar workshops de cozinha (falaremos deles mais à frente), equipada com um forno a lenha. Em breve, uma horta biológica nascerá nas suas proximidades, cujos produtos irão ser utilizados nas outras cozinhas da quinta.
Outra das mais valias do hotel é, sem margem para dúvidas, o seu SPA. De generosas dimensões e decorado minimalisticamente com materiais amigos do ambiente, transmite uma atmosfera suave e actual; que promove encontro entre a natureza através de uma vista panorâmica sobre as vinhas.
Por lá podemos encontrar diversos tipos de banho, suana, piscina interior aquecida e cadeiras com termo- e cromoterapia. No tempo mais quente a oferta inclui ainda uma piscina exterior com bar. Sugerimos que experimentem o Cinco Etapas de Serenidade, uma jornada holística em cinco momentos distintos.
Começa com um relaxante escalda-pés, uma mistura reconfortante de rosas, alecrim, lavanda, limão, água salgada quente e vinho tinto. Segue-se uma esfoliação corporal revigorante, utilizando grainha de uva e os produtos exclusivos da Vinoble Cosmetics, uma das marcas renomadas no spa da Pacheca, ao lado da britânica Elemis.
Em seguida, um tratamento facial que rejuvenesce e ilumina a pele do rosto, com destaque para a magia do Cooling Eye Gel da Vinoble. Depois, um banho de hidromassagem perfumado com flores e ervas aromáticas da Pacheca Nature e o Red Grape Bath, uma especialidade da marca austríaca.
Por último, uma massagem que incorpora técnicas provenientes de diversos lugares do mundo, revigorando completamente a experiência.
Voltando aos tachos, no Workshop de cozinha tradicional, é possível confeccionar, com a ajuda do Chef Luís Guedes, um conjunto de petiscos regionais e uma sobremesa. Para que pudéssemos desfrutar ao máximo desta experiência, a sous-Chef preparou com as crianças umas saborosíssimas bolachas de chocolate (não foi necessário chamar a atenção das crianças uma única vez, e isso demonstra bem o jeito que a Ana Coutinho tem para estas coisas: as bolachas ficaram muito saborosas!).
Eu e a Clarisse preparámos, com a ajuda do Chef Luis Gudes, Salada de bacalhau com grão; Salada de Polvo; Salada de Tomate coração de boi e queijo Fresco; Salada de beterraba com laranja e vinagrete de lima; Revoltos de alheira e espargos verdes; Repolgas salteadas; Cuscos transmontanos (uma delicia!!!); Pica-Pau de Vitela e Leite Creme.
Tudo isto com calma, tempo, paciência, descontracção e muita conversa, como se de a preparação de um almoço em família se tratasse. Terminada a oficina gastronómica, vinha a parte muito chata de provarmos tudo aquilo que se preparou, acompanhado, como não poderia deixar de ser por uma harmonização com néctares da Pacheca. No final as receitas são disponibilizadas aos "alunos".
Nas novas propostas da Pacheca existe ainda o Chá das Cinco - uma composição com uma infusão exclusiva da Pacheca, que combina alecrim, alfazema, lúcia-lima, salva, erva-príncipe e carqueja colhidos na quinta, além de uma variedade de pastelaria, e sessões de Wine blending com a equipa de enologia em que podemos fazer os nossos próprios vinhos. O pack Pacheca Flamour Experience engloba boa parte das experiências que vos descrevemos anteriormente.
Todas estas actividades são verdadeiramente (pelo menos foi isso que sentimos) pensadas para que possamos extrair delas o máximo possível, seja para melhorar a conexão connosco próprios ou para nos ligarmos a um número infinito de olhos familiares.
Como é óbvio, as actividades também tem o propósito de "fazer dinheiro" mas não se desligam nunca da autenticidade, e isso é o que distingue a Pacheca de outros espaços com ofertas "parecidas". Isso é particularmente visível na visita à Adega, no Ateliê d'Or e no workshop de cozinha tradicional.
Falta então falar-vos do tal quarto grupo de "A Insustentável Leveza do Ser" de Milan Kundera. Aqueles que não conseguem viver, a não ser sob um número infinito de olhos familiares. Amigos e família. São os obstinados organizadores de jantares, convívios, passeios e festarolas.
Estes são mais felizes do que os outros grupos porque estão enraizados em relacionamentos sólidos e duradouros, o que lhes proporciona um sentimento de pertença e apego emocional. Ao contrário dos outros grupos, que podem enfrentar incertezas e vulnerabilidades relacionadas com a dependência de olhares anónimos, de um parceiro específico ou de pessoas que já partiram deste mundo, estes do quarto grupo têm uma "rede de apoio" constante à sua volta.
O segredo deste grupo tem a ver com a partilha experiências em contextos fora da rotina, com o fortalecer dos laços afectivos em actividades recreativas conjuntas e com o enraizar de momentos de intimidade com aqueles que lhes são próximos através celebração de conquistas ou de apoio em momentos menos maus.
Daí a sua quase obsessão com os jantares, com os convívios, com os passeios e com as festarolas: há que cultivar, diariamente, a insustentável leveza e simplicidade das relações que mantemos com aqueles que amámos. E para isso, nada melhor que partilhar sabores, sonhos, conversas, gargalhadas, e de sermos felizes com a felicidade dos nossos semelhantes enquanto visitámos um lugar especial. Não é isso o que a Quinta da Pacheca vos transmite?
O titulo desta publicação, inspirado em Fernando Pessoa, procura metamoforizar essa constante evolução, dinamismo e metamorfose que a Quinta da Pacheca tem promovido desde 1738. Uma porta que nunca se fecha para o passado e se abre escancaradamente para o futuro, enquanto que no presente convida os seus visitantes a deixarem para trás quem eram e a abraçarem quem são. Ao mesmo tempo que reverenciam o legado, a cultura e a memória da região.
Sempre que saio da Pacheca fico com a sensação que aquilo que a Quinta era já não o é, que aquilo que o é já não o vai ser, mas que em toda esta evolução entre o que era e o que é, sabemos que nunca deixou de ser aquilo que sempre foi: um lugar especial a que podemos sempre voltar para encontrar um número infinito de olhos amigos que nos fazem sentir família. Obrigado por todas estas visitas, sempre com algo especial para recordarmos. Não mudem isso, sabendo que na próxima visita já terão mudado alguma coisa! :P
Para último algo que demonstra bem como as coisas são pensadas por aqueles lados. Devido à qualidade e excelência da Quinta da Pacheca muitos de vós poderiam pensar que o hotel já teria a classificação 5 estrelas, no entanto isso ainda não tinha acontecido. O Turismo de Portugal só no final do ano de 2022 é que lhe atribuiu essa classificação. O que é que qualquer empresa faria? Anunciar essa boa nova aos quatro cantos do mundo. Pois bem, a Pacheca fechou-se em copas nos 18 meses seguintes, para melhorar os seus serviços, aprimorar a sua equipa e criar novas ofertas, para agora, se apresentar como tal, com um programa que corresponde ao luxo que seus hóspedes esperam e procuram.