Aethos Ericeira | Kamapua'a e Pele
“Ser cuspido por um daqueles tubos havaianos gigantes e vociferadores é a sensação mais incrível que experimentei em toda a minha vida. É felicidade, medo e realização, tudo numa só experiência.” Shaun Tomson
Antes da história de hoje, duas premissas. A primeira é que vou falar muito sobre surf. A segunda é a de que o mais próximo que estive de surfar foi quando, em criança, parti uma tábua de passar a ferro enquanto tentava deslizar por umas escadas. Como a publicação de hoje teria, necessariamente, de passar por essa prática desportiva, um tanto ao quanto aventureira, procurei um livro que me abrisse um pouco a janela acerca do motivo pelo qual tantas pessoa se apaixonam por ela.
Encontrei o "Barbarian Days: A Surfing Life" de William Finnegan, um relato pessoal da vida de Finnegan, desde sua juventude na Califórnia e no Havai até à sua volta volta ao mundo em busca das melhores ondas. O livro não é apenas sobre surf, mas também sobre cultura e as pessoas que ele vai encontrando nas suas etapas.
Em muitos desses locais, a gastronomia desempenha um papel significativo, reflectindo a interconexão entre o surfista e o ambiente cultural em que ele se encontra. Sobre o Havai, Finnegan descreveu a importância dos luais e da comida tradicional havaiana, como o poi e o poke, que são frequentemente consumidos por surfistas após um longo dia de surf. Ele detalha ainda a cultura alimentar do Havai, onde a frescura dos ingredientes do mar é valorizada.
Sobre as suas viagens pelo Pacífico Sul, incluindo a Polinésia e as Fiji, Finnegan descreve o seu contacto com a culinária local, que muitas vezes inclui peixe cru e frutos do mar frescos, preparados de maneiras simples que realçam os sabores naturais. Ele destaca o modo os surfistas privilegiam ingredientes provenientes recursos locais, estabelecendo assim uma conexão íntima com o ambiente natural.
Sobre a Austrália, Finnegan refere a cultura do churrasco entre os surfistas, onde a comida se torna um ponto de encontro social após o surf. A carne grelhada, acompanhada por saladas frescas e cerveja, é uma parte essencial da experiência australiana de surf.
Portugal também é mencionado neste livro. Finnegan “descobre” a Madeira quando já tinha 40 anos (na verdade quase morreu lá!), dedicando mais de cinquenta páginas a esta paixão alicerçada em ondas grandes e poderosas. Ele descreve a ilha como um destino gastronómico de eleição, desafiador para os surfistas, porém gratificante, destacando principalmente suas ondas poderosas e sua dramática paisagem costeira.
Quanto a mim, a parte mais interessante do livro, é quando Finnegan relaciona o surf e a gastronomia através da lenda de Kamapua'a, o deus-javali, e Pele, a deusa do fogo e dos vulcões. Embora a lenda em si não seja centrada na comida, ela destaca a relação entre os deuses havaianos e os elementos naturais, incluindo o mar e a terra, que são fundamentais para a cultura do surf e da gastronomia no Havai.
Kamapua'a é um semideus havaiano. Possui a capacidade de se transformar rapidamente em várias formas, incluindo javalis, humanos e até plantas. Kamapua'a é associado à fertilidade, à chuva e à vegetação. Por sua vez, Pele é a deusa do fogo, dos vulcões e da criação das ilhas havaianas. É célebre pelo seu temperamento ardente e poder destrutivo, mas também pela criação de novas terras através das erupções vulcânicas.
Certo dia (porque em todas as histórias há sempre um "certo dia"), Kamapua'a encontra Pele. Fica imediatamente encantado com a beleza e o poder da deusa do fogo. Decidido a conquistá-la, Kamapua'a usa a sua habilidade de transformação para se aproximar dela. Pele, por outro lado, era uma deusa forte e independente, com pouca paciência para aqueles que não respeitavam seu poder. No entanto, a persistência e a coragem de Kamapua'a chamaram a sua atenção.
Apesar da atracção mútua, a natureza conflituosa das suas personalidades logo conduziu a confrontos. Kamapua'a tentava trazer chuva e fazer brotar vegetação onde a lava de Pele havia destruído a terra. Este embate entre água e fogo simbolizava a luta entre forças opostas da natureza: a criação e a destruição.
Um dos momentos mais dramáticos da lenda é a grande batalha entre Kamapua'a e Pele. Pele, cega pela fúria, lança rios de lava contra Kamapua'a. Em resposta, Kamapua'a transforma-se num javali gigante e usa a sua extrema força para desviar os fluxos de lava, trazendo chuva para apagar o fogo e permitir que a vida vegetal prosperasse novamente.
Após um período de intensos conflitos, Kamapua'a e Pele chegaram a uma trégua. Ambos perceberam que, embora diferentes, os seus poderes eram complementares e necessários para a harmonia das ilhas havaianas. Kamapua'a concordou em respeitar os territórios de Pele, e ela, por sua vez, permitiu que ele governasse as áreas férteis e chuvosas.
A lenda de Kamapua'a e Pele, para além de explicar a diferenças paisagísticas do Havai (ora com muita água ora com terrenos áridos), simboliza também a dualidade e o equilíbrio necessários na natureza. Enquanto Pele cria novas terras com suas erupções vulcânicas, Kamapua'a traz a chuva e a vegetação que tornam essas terras habitáveis e férteis. Um sem o outro seriam dispensáveis.
Os havaianos vêem esta lenda como uma representação dos ciclos naturais de destruição e renovação que são fundamentais para a vida nas ilhas. A história também destaca a importância do respeito e da harmonia entre forças opostas.
Kamapua'a e Pele continuam a influenciar a vida moderna em quase todas as comunidades de surf ao redor do mundo, pois a lenda promove uma profunda conexão com a natureza, a sustentabilidade e o respeito pelos recursos locais, elementos que se reflectem de modo indelével a cultura do surf.
Esses princípios não só preservam a herança cultural, mas também incentivam práticas responsáveis e sustentáveis que beneficiam tanto as pessoas quanto o meio ambiente. Todo este legado mitológico de sustentabilidade, identidade e simbiose com a natureza, em que grande parte da comunidade surfista se revê, encontra eco no Aethos Ericeira, que a todos esses predicados acrescenta ainda conforto, luxo e autenticidade.
Aethos é um grupo hoteleiro internacional focado na nova geração de viajantes de luxo, que inaugurou este hotel de cinco estrelas na Ericeira, reconhecida como a Meca do surf em Portugal. Localizado no topo de uma falésia, a apenas 40 metros do mar, este novo refúgio oferece vistas deslumbrantes do Atlântico e está cercado por algumas das melhores praias da Europa.
Destaca-se pelo seu foco no bem-estar e na saúde, proporcionando refeições saudáveis e deliciosas, além de aulas diárias de ioga e meditação. Este equilíbrio entre luxo e bem-estar é uma característica essencial dos hotéis Aethos. No entanto, o que realmente diferencia este projecto é o seu envolvimento e apoio à comunidade local, reflectindo um compromisso genuíno com a sustentabilidade e o desenvolvimento local.
A propriedade, abençoada pelas vistas panorâmicas do mar, possui 50 quartos e suítes, para além de um passadiço em madeira ao longo da falésia, um deck para ioga e meditação, e uma área com fire pit. Enfatizando o bem-estar físico e mental, o hotel oferece diversas experiências pensadas para atender às necessidades de uma nova geração de viajantes de luxo e entusiastas do surf. Entre as comodidades, estão uma piscina de água salgada aquecida, um spa com hammam, uma sala de tratamento e um ginásio.
Para explorar a beleza natural ao redor, os hóspedes podem utilizar as bicicletas eléctricas disponibilizadas pelo hotel, permitindo fácil acesso às praias e trilhos próximos. Os hóspedes também têm acesso ao programa “Residents Members" que oferece privilégios semelhantes aos dos membros do Aethos, válidos durante toda a estadia e em todas as actividades culturais e sociais organizadas pelo hotel.
A arquitectura, muito pensada, para que criasse um espaço sofisticado e acolhedor, mas que não manchasse a beleza natural da região, esteve ao cargo do Astet Studio, um renomado escritório de arquitectura e design de interiores de Barcelona, juntamente com o arquitecto português Luís Pedra Silva. Utilizando tons da areia, azul profundo do Atlântico e as cores quentes da falésia, o design incorpora materiais como madeira, peles, veludos, pedra e mármore. O resultado é uma simbiose perfeita entre o natural e o eclético.
O design foi concebido a pensar na comunidade jovem que frequenta o Aethos Ericeira, composta por nómadas modernos que apreciam tanto o surf quanto o luxo descontraído. A abordagem ecléctica garante que os hóspedes se sintam confortáveis e conectados ao ambiente local, enquanto desfrutam de um toque internacional e sofisticado. Nas ofertas do hotel podemos encontrar aulas de grupo (ou privadas) de surf, yoga, meditação, sound healing, pilates, movement flow, piqueniques, workshops de flores e botânica, workshops de mixologia e provas de vinho.
Para o fim, guardei um dos melhores cartões de visita do Aethos Ericeira, o seu restaurante Onda. Quando estávamos a ultimar a visita ao Aethos percebi que o seu director era Floris Boyen (que tinha conhecido há uns anos no Maison Albar - Le Monumental Palace Porto). O Floris contou-me que tinham feito uma grande contratação para o restaurante, o Nuno Matos. Eu respondi-lhe que concordava, pois tinha conhecido o Chef no Six Senses, aliás, em 2022 ganhou mesmo o prémio Chefe em destaque do blogue.
O Nuno promove pratos muito naturais e aparentemente simples (quer no número quer no tipo de elementos), tentando destacar a qualidade e frescura dos produtos que usa, maioritariamente, sazonais e locais. Inclui também elementos não locais, para adicionar algo distinto (quase irreverente) ao prato, escondendo sabores que dão uma outra camada de emoção e identidade. Trabalha a acidez dos pratos como poucos e isso faz com que o palato esteja sempre desperto para o próximo prato e para o próximo sabor escondido.
No restaurante ONDA, a aposta é numa cozinha simples e cuidada, utilizando produtos de alta qualidade, locais e sazonais. O foco é nos sabores, com um destaque especial para os produtos do mar, vegetais da região e ingredientes menos comuns. O Chef faz questão de incluir na sua proposta opções vegan, vegetarianas e sem glúten, garantindo que ali todos podem usufruir de uma boa refeição. Na sala o Chefe João Vaz aconselha os melhores vinhos para cada prato e faz com que os erviço decorra sem pressas (mas sem pausas), serenamente e com elegância.
A proposta para o almoço é mais casual e leve, com pratos como a refrescante e saborosíssima Salada de alface romana, queijo de São Jorge, croutons, pinhões e peito de frango; a delicada Ceviche de robalo, abacate e cracker de camarão e o guloso Hamurger de vaca, alface romana, queijo cheddar e cebola caramelizada.
Há um prato que é um hino à gastronomia despretensiosa mas cheio de sabor e significado: o Cachorro de polvo, molho tártaro, alface romana e pickles de cebola. Fumado, ligeiramente adocicado, salgado e carregado de umami. Tinha uma uma acidez agradável, um toque de ervas frescas, inúmeras texturas e uma cremosidade que chegava a ser viciante. É dos pratos que ultimamente mais gostei, merece por si só a viagem e é daqueles que nos faz lamber os dedos no final.
A abordagem no jantar é mais intimista, oferecendo uma maior variedade de opções, como o Crú de robalo selvagem, maçã verde, trevos e lima (muito rico, com um toque fresco-cítrico sedutor, a suavidade marítima do robalo, o toque ácido da maçã verde, a leveza herbácea dos trevos e o zing da lima); o Polvo do atlântico, molho de noz, uvas e salsa (que colocava no mesmo tom a suculência do polvo do Atlântico, o toque rico e terroso do molho de noz, a doçura das uvas e a frescura da salsa); a Garoupa selvagem, couve-flor, pak choi e cebola assada (generosa, equilibrada e cheia de contrastes); e o Peito de pato, puré de batata doce e nabo assado.
O pato estava estaladiço na gordura exterior e suculento na carne interior. Muito rico, fino, saboroso e com uma enorme dimensão no palato. A gordura, untuosidade e "exagero voluptuoso" do pato são equilibrados pela frescura e doçura fumada da batata e pela extravagância terrosa caramelizada do nabo. Gostei muito!!! Todo este menu, num nível muito alto e sem falhas.
Com as sobremeses o Chef Nuno Matos mostra aquilo que é ... e também o que vai ser. O Posset de limão, sorvete de framboesa, crumble de amêndoa tem um sabor refrescante e equilibrado, combinando a cremosidade cítrica do posset de limão, a doçura frutada e ácida do sorvete de framboesa, e a crocância rica e ligeiramente doce do crumble de amêndoa. O empratamento é sereno e delicado, mas cheio de bom gosto. O Arroz doce de côco, sorvete de tangerina, salicórnia tem a dicotomia de Kamapua'a e Pele e é quase uma bonita metáfora para o hotel.
Tem um sabor exótico e equilibrado, combinando a cremosidade suave e doce do arroz doce de coco, o toque cítrico e refrescante do sorvete de tangerina, e a ligeira salinidade e crocância da salicórnia. Mas também está cheio de pertença, remetendo-nos para as ondas e para surf, em que o sorvete surge como um tesouro protegido quase a ser cuspido por um daqueles tubos havaianos gigantes e vociferadores. O sabor é felicidade, medo e realização, tudo numa só experiência. Com o duo Floris e Nuno, antevejo um futuro risonho para o Aethos Ericeira. O Floris só sabe fazer bem e o Nuno não sabe fazer mal. Um é fogo, outro é água ;) Para além disso, a propriedade permite-lhes crescer em oferta, diversidade e excelência. Vai uma aposta que se vai tornar num caso sério de sucesso?
Esta crítica serve ainda para introduzirmos uma novidade nas publicações. A partir de agora, e quando a ocasião o justificar iremos recomendar alguns restaurantes da zona do hotel que visitámos. Desta vez a selecção recaiu no restaurante Jangada.
Oferece um menu versátil, sempre focado nos produtos e fornecedores locais. Com inúmeras opções de peixe, carne, pizzas e massas, também cumpre com quem busca refeições mais leves com uma variedade de sanduíches, entradas e saladas leves. A essência do cardápio, desenvolvido pelo Chef residente André Rebelo, está nos paladares frescos, sabores autênticos, grande diversidade e preservação da origem dos produtos.
Destacámos os Ovos rotos de camarão com presunto (primeiro estranha-se depois entranha-se ;)); o Seaviche (um ceviche muito fresco de corvina, batata doce e crocante de arroz), o Ericeira (arroz de marisco, sapateira e camarão tigre; divinal!!!), a Vazia de Black Angus com batatas fritas e arroz de enchidos no forno (o arroz de tão bom que estava roubava o protagonismo ao rato); o Abade de Priscos (que respeita o original) e o Home Sweet home (Doce da casa, crumble café e amendoim, natas e doce de ovos). A carta de vinhos é generosa, com vinhos de nicho e com uma elevada selecção regional. Provem também o cocktail Perception que não se vão arrepender ;)