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No meu Palato

No meu Palato

Louro | Tudo (metamorfose) e o seu contrário

“É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso torna-a mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos a ler não nos desperta como um soco na cabeça, porque perder tempo lendo-o?" Franz Kafka

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Imaginem que num certo dia acordam e em vez de costas têm asas, em vez de pernas têm patas, e em vez de cabelo têm antenas... Foi isto que aconteceu com Gregor Samsa. Contudo e ao contrário do que seria de esperar, Gregor não demonstrou nenhuma emoção, choque ou descrença. Os seus pensamentos imediatos foram sobre a sua vida profissional. Podemos vê-lo preocupado com o comboio que precisa apanhar e com as expectáveis reprimendas que teria de enfrentar do seu chefe. Assim, a sua transformação corporal não o incomodou minimamente naquele momento em que acorda como insecto gigante.

Louro Felizmente tudo isto é apenas ficção, e da boa. "A Metamorfose" foi escrita pelo romancista alemão Franz Kafka no inicio do séc. XX e publicada no ano de 1915, período em que a Alemanha se tornara uma grande potência europeia. Todo esse contexto de enorme crescimento industrial impulsionado pela produção de aço e ferro-gusa, de uma população urbana maioritariamente da classe trabalhadora e de uma sociedade bastante materialista e desumana, cria bastantes pontes metafóricas com o facto do protagonista ser um insecto.

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Em todo esse mundo medonho, sombrio e frio há algo que dá cor às páginas de "A Metamorfose" e que cria um vínculo inseparável com a normalidade/humanidade: a comida. No livro e nas nossas vidas, a comida não pode ser vista apenas como uma fonte de subsistência. Uma das formas mais palpáveis de expressar amor e carinho por alguém é servir-lhe uma boa refeição. A comida tem essa qualidade notável de proporcionar às pessoas uma sensação de contentamento, apego e calor. 

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No livro, Grete, irmã de Gregor, demonstra a sua preocupação pelo irmão trazendo-lhe comida. No primeiro dia, uma tigela cheia de leite com açúcar e com pequenos pedaços de pão branco. Grete traz-lhe esse leite adoçado porque era a bebida favorita de Gregor antes da transformação, o que faz com que ele, mesmo na condição patética em que se encontra, "ria de alegria"

Louro Quando Grete descobre que, que por causa dos seus novos apetites, o leite já não agrada a Gregor, ela traz uma nova variedade de alimentos no dia seguinte, mais ao gosto de um insecto, como legumes, carne, uvas passas, amêndoas, queijo, pão e manteiga. Devido à transformação de Gregor em insecto, não havia como comunicar com ele, e a comida tornou-se o único canal através do qual Grete podia mostrar que ainda o consideravam parte da família, que o amavam e que se preocupavam com ele, isto apesar da sua condição que a todos metia medo.

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O acto de comer juntos é algo muito umbilical as todas as famílias. É o momento em que os diferentes elementos se sentam e passam tempo juntos, simbolizando a unidade, vínculo e harmonia dentro dela. A importância dessa cultura de "sentar-se juntos para comer" é a de que ela oferece a oportunidade para os membros da família se reunirem, tirarem algum tempo das suas agendas ocupadas para compartilhar histórias e mostrar cuidado e amor uns pelos outros. Paradoxalmente, Kafka parece querer pôr em confronto duas rotinas, uma boa e uma má. 

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A má é a rotina relacionada com a comida em si, com o comermos sempre o mesmo, da mesma forma, com a mesma aparência e sem mudanças. A segunda, a boa, está relacionada com a vontade de partilharmos a comida, recorrente e invariavelmente com aqueles que mais amámos. É a ausência da primeira rotina que potencia a segunda. E é sobre a importância dessa metamorfose gastronómica que vos quero falar hoje, socorrendo-me para isso do Louro Restaurante em Viana do Castelo. 

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Localizado no coração do Alto Minho, na margem norte do rio Lima, o Louro oferece uma experiência gastronómica muito particular. Desde a sua abertura em 2019, tem-se dedicado a destacar os sabores da região com uma oferta que está sempre em evolução. O compromisso com a sustentabilidade e com a tal metamorfose assegura que os menus são renovados a cada três meses, utilizando os melhores ingredientes disponíveis para capturar a essência da natureza e a história do povo minhoto.

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No Louro, procura-se criar uma transformação a cada visita, levando a que cada garfada ocorra uma viagem de descoberta, muito importante ao nível dos afectos. A nossa experiência gastronómica começou com Broa amarela, focaccia, manteiga das marinhas e azeite Quinta de Ceis. Prosseguiu com uma alegre Salada de Inverno de quinoa negra, cenoura, amêndoa, funcho e yuzu que nos brindou com uma combinação de sabores e texturas bastante única e refrescante: as nozes terrosas da quinoa, a doçura da cenoura, a textura crocante da amêndoa e o anisado do funcho que ligava tudo. 

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Seguiu-se um dueto: Sapateira e camarão, com cremoso de abóbora e espuma de crustáceos que nos remetia para a riqueza do marisco, para a acidez elegante da espuma e para a untuosidade generosa da abóbora; e Alga soufflé de nori, água do mar, caviar de algas cheia de frescura vegetal e umami, que parecia querer celebrar os sabores do mar.  

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O Ensopado de robalo de linha, alho francês braseado, croutons de focaccia, fumet de camarão e espuma de limão foi o meu momento favorito. Parecia ser o resultado de uma redução de mar, muito densa, rica e intensa. A riqueza adocicada/fumada do alho-francês não roubava protagonismo ao peixe. Os croutons de focaccia e o fumet de camarão acrescentaram complexidade, untuosidade e uma ligeira irreverência. A espuma deu-lhe a aristocracia que merecia. Em conjunto, é uma criação que exibe equilíbrio, ponderação e muito sabor!

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No Veado, cenoura roxa grelhada, raiz de aipo, cebolinha e beterraba fumada a carne tinha um sabor pleno e intenso, que se derretia na boca. Havia o doce da redução, havia o fumo salgado das cenouras, havia a untuosidade e intensidade da beterraba, havia acidez da cebola e havia também o sabor generoso da raiz de aipo. Todos eles enobreceram um prato que foi um belo ensaio de equilíbrio, de aromas, de sabores e de cores. 

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Na pré-sobremesa Limão, Lima e Verbena, tiramisú cítrico, framboesa desidratada e gelado de hortelã. Imaginem uma criação onde cada colherada se materializava num misto de sabores e sensações: a acidez vibrante do limão e da lima traziam uma explosão de frescura, equilibrada pela doçura cremosa do tiramisú cítrico que suavizava e enriquecia o paladar. 

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A verbena adicionava um toque herbal, lembrando um jardim perfumado, enquanto a framboesa desidratada contribuía com a sua intensidade doce e ligeiramente ácida, proporcionando uma textura crocante inesperada. Finalizando essa combinação, o gelado de hortelã oferecia um refresco revigorante, limpando o paladar e deixando-o preparado para o momento seguinte.

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Paragem final: Chocolate com gelado de leite, mousse de chocolate quente e ganache de cacau e merengue. Com diversos tipos, texturas e intensidades de chocolate, esta foi uma sobremesa que se demonstrou camaleónica e bastante heterogénea na prova, pois a cada momento iam surgindo diversos sabores, contrastes, intensidades e harmonias. É uma bonita e despretensiosa homenagem a este nobre e muito apreciado produto.

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Ao leme de tudo isto esteve o jovem Chefe André Campelo, formado pela Escola de Hotelaria e Turismo de Viana do Castelo,  um dos dois fundadores (juntamente com Ana Afonso) do restaurante Louro. Possui cinco anos de experiência em Barcelona (2013-2017) e trabalhou por dois anos como Chefe principal na cozinha do hotel Feel Viana (o número de bons Chefes a ter passado por este hotel já é considerável!!!). Após essa experiência, decidiu dedicar-se a uma culinária mais personalizada, mais gastronómica, mais conceptual, ainda assim focada na cozinha regional. Destaque ainda para a amabilidade e profissionalismo da Chefe de sala Ana Gomes; e para a carta de vinhos, regional, de qualidade e ampla.

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Devido a toda a metamorfose que vos falei no inicio, entre a nossa visita e a publicação desta crítica, o Louro anunciou uma nova carta que estará disponível até ao final da estação, que nos convida a celebrar a época mais florida do ano com três menus degustação cuidadosamente elaborados. O Descoberta (uma viagem sensorial de 9 momentos para saborear a frescura e a simplicidade, mergulhar nos sabores do mar e montanha e experimentar a tradição reinventada, em modo de celebração da estação);  o Primavera (7 momentos, inspirado nos sabores e produtos da estação); e o Essência (5 momentos em homenagem à origem, às frutas, aos legumes e aos vegetais da estação).

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A frase de Franz Kafka sobre a importância de livros que nos despertam como um "soco na cabeça" pode ser relacionada com o conceito de metamorfose, onde o abanão dado por algo inesperado nos abre uma nova sensibilidade e perspectiva. O mesmo sucede na gastronomia. O Louro muda frequentemente de menu, não apenas por razões relacionadas com a sustentabilidade, mas também pelo tal soco no palato a quem se senta nas suas mesas. Assim como os livros de Kafka desafiam e perturbam, incitando a reflexão e mudança, este restaurante também procura renovar e impactar, proporcionando uma experiência única e consciente a cada visita, onde a inovação constante se alinha com a sustentabilidade, criando uma metamorfose culinária contínua. É tudo (a rotina da excelência, do sabor e da autenticidade) e o seu contrário (a ausência da rotina nas cartas, nas propostas e nas harmonizações).