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No meu Palato

No meu Palato

Ir Com Sede Ao Pote | Fogo que arde sem se esquecer

"Não gosto da vida em banho-maria. Gosto de fogo, pimenta, alho e ervas. É por um triz que não sou uma bruxa." Martha Medeiros

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Desde o horizonte temporal que a nossa memória colectiva permite alcançar, o fogo tem sido um elemento crucial na evolução da civilização humana. A habilidade de controlar o fogo, datada de cerca de 1,5 milhão de anos, marcou uma viragem significativa na história da humanidade, influenciando a nossa dieta, os nossos hábitos sociais e culturais, e até mesmo o nosso desenvolvimento cognitivo.

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Controlar o fogo foi uma das maiores inovações tecnológicas da pré-história. O uso desse elemento para cozinhar alimentos não só tornou as comidas mais seguras e fáceis de digerir, mas também permitiu uma maior absorção de nutrientes. Este avanço nutricional foi crucial para o desenvolvimento do cérebro humano, contribuindo para a nossa evolução enquanto espécie.

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Os estudos científicos sugerem que a interacção inicial dos humanos com o fogo pode ter ocorrido há cerca de 2 milhões de anos, quando os nossos ancestrais usavam as chamas causadas por fenómenos naturais, como incêndios ou relâmpagos, para cozinhar alimentos. As evidências de uso controlado de fogo incluem sítios arqueológicos como a Caverna Wonderwerk na África do Sul, datados de cerca de 1 milhão de anos, onde foram encontrados restos de ossos e plantas queimados. 

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Além disso, há sinais de fogo controlado em locais como o de Gesher Benot Ya'aqov em Israel, com cerca de 800 mil anos​. Há 400 mil anos, o Homo erectus começou a usar o fogo de maneira ainda mais controlada. Esta prática espalhou-se e aprimorou-se ao longo dos milénios, permitindo que as primeiras comunidades humanas utilizassem o fogo não apenas para cozinhar, mas também para protecção contra animais selvagens e aquecimento. 

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Além da sua importância prática, o fogo também desempenhou um papel central nas interacções sociais humanas. As fogueiras não eram apenas uma fonte de calor, protecção e luz, mas também serviam como centros de convívio social. Ao redor das fogueiras, as primeiras comunidades humanas reuniam-se para compartilhar histórias, ensinar habilidades e reforçar laços sociais. 

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Este acto de se reunir ao redor do fogo para cozinhar e comer juntos criou uma tradição de cozinha de conforto que perdura até aos dias de hoje. Os potes de ferro fundido, usados pelos nossos antepassados para cozinhar sobre o fogo, são um símbolo dessa tradição. 

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O uso do ferro fundido para fazer utensílios de cozinha começou por volta do século VII a.C. na China, e mais tarde espalhou-se para outras partes do mundo. Robustos e versáteis, esses potes permitiam cozinhar uma variedade de alimentos de forma lenta e uniforme, realçando os sabores e tornando as refeições mais nutritivas e saborosas. 

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A utilização desses potes reforça a ideia de cozinhar como um ato de paciência e cuidado, onde o tempo e o calor do fogo transformam ingredientes, por vezes simples, em pratos reconfortantes. Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Por tudo isto, reunir-se ao redor de uma fogueira ou de um fogão a lenha, cozinhando em potes de ferro fundido, passou a ser sinónimo de um ambiente de intimidade e conexão.  É uma prática que transcende gerações, onde receitas e memórias são passadas adiante, mantendo vivas as tradições familiares e culturais. Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Num mundo moderno onde a tecnologia muitas vezes nos afasta, esses momentos de cozinhar e comer juntos ao redor do fogo reconectam-nos bidireccionalmente, com nossas raízes e uns com os outros. Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Assim, o fogo, desde a sua domesticação há cerca de 1,5 milhões de anos, passando pelo uso mais controlado por volta de 400 mil anos, até aos potes de ferro fundido dos nossos antepassados a partir do século VII a.C., não transformou "apenas" a nossa dieta e desenvolvimento, mas também estabeleceu o local onde se cozinha como o coração da convivência social. 

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Ao redor do fogo, encontramos conforto, memórias e tradição, elementos essenciais que continuam a moldar as nossas vidas e cultura até hoje. Eventos modernos como o "Ir com Sede ao Pote" desenhado por  Renato Cunha (Ferrugem) e a sua esposa Anabela Rodrigues Cunha, em Famalicão mantêm viva essa tradição, celebrando indelevelmente esse legado ancestral.  Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

O "Ir com Sede ao Pote", que decorre no quintal da Casa Ana Monteiro, a uns escassos metros do  restaurante Ferrugem, não é apenas um evento gastronómico, mas também uma celebração da herança gastronómica e comunitária. A Casa Ana Monteiro é uma pequena quinta da família, com uma habitação de arquitectura popular, actualmente destinada à exploração turística.  

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Com jardim, horta biológica e excelentes condições para a criação de animais de capoeira, é o palco perfeito para este conjunto de experiências, tanto pela beleza do espaço, como pela privacidade que a topografia do terreno lhe confere.

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 Este evento promove a prática de cozinhar ao ar livre em potes de ferro fundido, destacando a importância de técnicas culinárias tradicionais. Ao reunir os entusiastas da gastronomia genuína, o "Ir com Sede ao Pote" cria um ambiente onde a comida é preparada com paciência e cuidado, reflectindo a essência das antigas fogueiras comunitárias. Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Destaca-se pela sua capacidade de conectar pessoas através da culinária, proporcionando uma experiência sensorial completa que envolve sabores autênticos e uma forte sensação de grupo, de família. Em cada edição do "Ir com Sede ao Pote", é escolhido um produtor vínico renomado para harmonizar as propostas gastronómicas do Chef Renato Cunha. 

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Esta selecção criteriosa de vinhos visa complementar e realçar os sabores dos pratos preparados, criando uma experiência enogastronómica verdadeiramente autêntica.  A colaboração com distintos produtores de vinho não só enriquece o evento, mas também destaca a diversidade e a qualidade dos vinhos das diferentes regiões, proporcionando aos participantes uma imersão completa nos aromas e sabores.Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Eleito “Experiência Turística de 2022” nos Prémios de Inovação e Turismo do Minho, o "Ir Com Sede Ao Pote" conta com a participação de alguns chefes convidados, 9 produtores e 1 distribuidor de vinhos, desafiados pelos anfitriões a apresentarem vinhos especiais, preferencialmente colheitas mais antigas e em garrafas de grandes formatos. 

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Esta edição conta com a Adega Casa da Torre e Secret Spot Wines, Aphros Wine, Aviwor|d, Crónica, Herdade do Sobroso, Palato do Côa, Quinta das Bágeiras, Quinta de Cottas, Quinta do Crasto e Soalheiro.

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Juntam-se ainda produtores das mais variadas áreas, com destaque para a “Infusões com História”, parceiro oficial, que irá preparar um blend especial com plantas aromáticas, de edição única, para cada evento. 

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Marcámos presença no primeiro #ircomsedeaopote de 2024 a 25 de Maio cujo produtor convidado foi o Soalheiro (quanto a mim o melhor  e mais diversificado produtor da região dos vinhos verdes). Já existiriam mais três encontros: a 8 de Junho, 22 de Junho e 13 de Julho. Para o futuro estão já agendadas mais seis datas: 27 de Julho; 3 e 17 de Agosto; 7 e 21 de Setembro, e 5 de Outubro. Algumas destas datas já estão esgotadas. 

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Para abrir o apetite do repasto de dia 25 de Maio tivemos Pão de fermentação natural e farinhas bio (trigo, arroz e trigo com azeitona); Queijo de cabra de Alfeizeirão e S. Jorge 30 meses (Lourais); Paio do cachaço e paia de toucinho de porco preto alentejanoEscabeche de coelhoSalada de tomate, rúcula selvática (uma delícia) e pickles de pêra baguim; e Tripinha enfarinhada frita.

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O Soalheiro trouxe a fruta tropical e mineralidade do Primeiras Vinhas 2022 - 1.5 L, a toranja e notas vegetais do Terramatter 2022 – 3 L; a laranja e baunilha do Espumante Bruto Barrica 2019 - 1.5 L; a groselha e especiarias do Oppaco 2019 - 1.5L; o pêssego e notas fumadas do Reserva 2020 – 1.5 L; e a pedregosidade e lima do Granit 2023 - 1.5 L. 

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Nas restantes propostas gastronómicas tivemos Canja de galinha com infusão de hortelã da Infusões com História (em que a hortelã contribuía com um picante vegetal que trazia frescura); Feijoada de samos e línguas de bacalhau com feijoca branca (finalizado com paia de porco preto: rica, intensa e robusta, combinando a suavidade do bacalhau com a intensidade do feijão e a suculência voluptuosa da charcutaria) e Arroz de robalo e lavagante, gengibre, limão e infusão de lúcia-lima do Soalheiro (reconfortante mas com sabor delicado e refrescante, equilibrando a suavidade do peixe e do marisco com o toque cítrico e aromático dos temperos). 

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Como prato de carne, a Favada de rabo de boi (com batata nova e cenoura biológica:  de sabor profundo e aconchegante, onde a maciez da carne se entrelaçava com a doçura natural dos legumes frescos.); e na sobremesa Leite-creme (com leite fresco cru e ovos de galinhas de raça amarela: cremoso, com uma textura aveludada e um toque subtilmente caramelizado).

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Os Ingressos de participação deverão ser adquiridos através do +351932 012 974 ou por e-mail para restaurante@ferrugem.pt e têm o valor de €100 por pessoa (IVA incluído à taxa legal em vigor). É gratuito para crianças até aos 3 anos de idade e para crianças dos 4 aos12 anos o desconto é de 50%. Os lugares são limitados.

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

O ingresso é personalizado e enviado para a morada do cliente, num elegante estojo com uma cortesia da “Infusões com História”. É intransmissível e a sua utilização está indexada à data escolhida pelo titular. Caso as previsões climatéricas obriguem ao adiamento ou cancelamento de alguma das edições, será proposto ao participante o reagendamento para outra data que esteja disponível, o valor do ingresso só é reembolsável caso o adiamento ou cancelamento seja imputável aos organizadores.

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

Li há uns tempos n'O Diabo na Cozinha, de Marco Pierre White, que quando vamos a um restaurante de um Chef muito (re)conhecido, deveríamos "ter direito" a que esse Chef estivesse no restaurante a preparar os pratos aquando da nossa visita. No "Ir Com Sede Ao Pote" , além de nos podermos reconectar com o legado do fogo, da cozinha de memórias e dos potes, temos o privilégio único de degustar pratos confeccionados por Chefs predestinados, como é o caso do Renato.

Ir Com Sede Ao Pote de Renato Cunha

 Este evento não só nos oferece uma experiência gastronómica de excelência, mas também nos brinda com a oportunidade de conversar, trocar receitas e aprender directamente com o Chef, quase como se visitássemos a casa de um familiar. A comida é aquilo que o Chef já nos habituou no Ferrugem: produto, autenticidade, memória e sabor. Haverá melhor fogo para o apetite que este? 

Uma nota final apenas para a entrega a que o Chef Renato Cunha se predispõe nestes encontros, foi por um triz que não o confundimos com um bruxo. :P

Novas colheitas Quinta dos Frades | 100 anos de eleganteficação e uma rima

“Triunfam aqueles que sabem quando lutar e quando esperar.”  Sun Tzu

Novas colheitas Quinta dos Frades

A Quinta dos Frades tem cerca de 200 hectares e é uma das mais antigas propriedades durienses. No Séc. XIII foi doada a monges de Ordem de Cister, então amplamente implementada no Douro, integrando o Mosteiro de Santa Maria de Salzedas e ficando desde aí sempre ligada à vinha e ao vinho. 

Novas colheitas Quinta dos Frades

Depois da extinção das ordens religiosas, a Quinta dos Frades foi arrematada, em 1841, pelo 1º Barão da Folgosa. Um século depois foi adquirida pelo industrial português Delfim Ferreira, mantendo-se na família até hoje. A enologia da Quinta dos Frades está a cargo dos enólogos Anselmo Mendes e Diogo Lopes. 

Novas colheitas Quinta dos Frades

Os cerca de 20 hectares de vinha velha centenária da Quinta dos Frades – uma das maiores manchas de vinha velha do Douro – dão origem aos principais vinhos DOC Douro da casa e contribuem para três novas edições que agora chegam ao mercado: Quinta dos Frades Grande Reserva 2016; Quinta dos Frades Vinha dos Deuses 2019; e Quinta dos Frades Dona Sylvia Grande Reserva 2017, um vinho de tributo que nasce apenas em anos especiais.

Novas colheitas Quinta dos Frades

Tudo isto para vos dizer que a Quinta dos Frades acaba de lançar no mercado novas colheitas de três vinhos que expressam de modo muito particular o património de vinha velha centenária desta icónica propriedade da Folgosa do Douro. Ao longo dos cerca de 200 hectares que se debruçam sobre o rio e a mítica N222, concentram-se 20 hectares de parcelas com mais de 100 anos, uma das mais relevantes manchas de vinha velha da região, que dá origem aos principais tintos DOC Douro da casa.

Novas colheitas Quinta dos Frades

E é precisamente esta a origem principal dos três novos vinhos sobre os quais hoje vos falo: Quinta dos Frades Grande Reserva 2016; Quinta dos Frades Vinha dos Deuses 2019; e Quinta dos Frades Dona Sylvia Grande Reserva 2017.

Novas colheitas Quinta dos Frades

O Vinha dos Deuses Reserva 2019 ( 18.50 €, 88 pts.) é uma proposta muito interessante que alia a profundidade e concentração das vinhas velhas com uma fruta mais primária, em busca de um perfil mais jovem, assegurado pela integração de um lote preveniente de vinhas com cerca de 40 anos. De cor rubi bastante densa, carrega bonitas notas de ameixa preta, amoras, cereja, 
baunilha e uma ligeira tosta. Na boca é seco, carnudo, longo e mostra taninos redondos.

Novas colheitas Quinta dos Frades

Já o Quinta dos Frades Grande Reserva 2016 ( 30.50 €, 92 pts.)  é o vinho mais emblemático da quinta e, ano após ano, o exemplo de consistência e qualidade do tradicional field blend duriense, onde estão identificadas mais de 20 variedades, com destaque para as predominantes Touriga Franca, Tinta Amarela, Tinta da Barca, Tinta Carvalha, Tinta Francisca, Tinto Cão, Bastardo, Rufete e Donzelinho. De porte rubi escuro, emana notas intensas a compota de mirtilo, ameixa seca, esteva, mato, tosta e pimenta preta.
Na boca é seco, elegante e com muita presença.

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Para finalizar, o vinho que mais me surpreendeu nos últimos anos. O Dona Sylvia Grande Reserva 2017 ( 52.50 €, 96 pts.) pertence a uma referência que se destaca por ser produzido apenas em anos especiais. Trata-se de um dos vinhos de tributo da marca, à imagem de outro topo-de-gama, o Comendador Delfim Ferreira. Neste caso, trata-se de uma homenagem da família em memória de Sylvia Ferreira, esposa de Delfim Ferreira, o grande impulsionador da história recente da propriedade (que como vos disse anteriormente a adquiriu em 1941). 

Novas colheitas Quinta dos Frades

De traje rubi escuro, é muito complexo e cheio de camadas: cedro, resina (os balsâmicos são deliciosos), compota de ameixa, bagas silvestres, cassis, cravinho, caixa de tabaco e fumo. Na boca é complexo, equilibrado, ponderado, fino e bastante longo. Por curiosidade, estive a ver a classificações deste vinho e sinceramente não consigo perceber, talvez não tenha o preço tão elevado que possa "justificar" a sua nobreza :P Para mim é um vinho extraordinário e foi um privilégio enorme poder descobri-lo.

Novas colheitas Quinta dos Frades

A Quinta dos Frades exemplifica, através destes vinhos, a arte de saber esperar, fazendo rimar paciência com excelência. Provem este Dona Sylvia Grande Reserva 2017 e digam-me se sou eu que estou enganado ;)

In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e deRaíz | A parábola da ilha desconhecida

“Estas terras marginais são predilectas do turismo. O viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar.”  José Saramago 

 In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e de Raíz | O luxo de não passar despercebido

Começado a escrever em Fevereiro de 2007, "A Viagem do Elefante" acaba por testemunhar, na primeira pessoa, uma etapa bastante desagradável da vida de Saramago. É por esta altura que Nobel português se confronta com um grave problema respiratório que o obriga, não só a suspender a sua actividade, como também a temer pela sua própria vida. Contudo, e apesar das escassas esperanças que tinha, em Fevereiro do ano seguinte, o autor pôde retomar a escrita do livro, tendo-o terminado seis meses depois, já em 2008. Saramago morre passados 2 anos, Pilar, a sua esposa, refere muitas vezes que foi este livro que o manteve "ligado" à vida por mais uns anos.

 In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e de Raíz | O luxo de não passar despercebido

@O Monte

Voltando ao livro, ele conta-nos uma história que se baseia em (alguns) factos reais. Em 1551, um elefante realizou uma viagem entre Lisboa e Viena, sendo escoltado inicialmente por oficiais de D. João III de Portugal, e mais tarde por subordinados do arquiduque Maximiliano da Áustria. O elefante Salomão e o seu mahout (treinador e tratador) já tinham anteriormente feito uma longa viagem marítima entre Goa e Lisboa, e permanecido alguns anos na capital portuguesa. Essa estadia é interrompida com o desejo do rei português em oferecer Salomão ao seu congénere austríaco, desejo esse incentivado pela sua esposa Catarina da Áustria. Partindo de Lisboa, o elefante passa pelo interior de Portugal, por Valhadolid em Espanha, Itália e pelos Alpes, até chegar finalmente a Viena. No romance, Salomão e seu mahout Subhro (a quem o arquiduque renomeia Fritz) percorrem todas essas diferentes latitudes, num ritmo forçadamente lento, acompanhados por vários funcionários e militares.

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Ao longo do caminho encontram nómadas, aldeões e habitantes de cidades, que, de várias maneiras, vão procurar dar a sua interpretação subjectiva do súbito facto objectivo de um elefante ter entrando nas suas vidas. Essa narrativa da descoberta através das viagens, já havia sido usada antes por Saramago n'"A jangada de Pedra" (quando a Península Ibérica se separa da Europa e viaja pelo Oceano Atlântico), n'"O Ano da Morte de Ricardo Reis" (quando o protagonista passeia pela cidade de Lisboa), e no diário de viagens "Uma Viagem a Portugal".

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Assim, tal como nessas outras obras, a viagem do elefante funciona não apenas como um conceito espacial, mas também como uma forma de levar o leitor a um desvio pelos corredores da memória, da história e das interpretações forçosamente subjectivas de acontecimentos fracturantes. A escrita deste conto, como Saramago faz questão de salientar, teve como inspiração um restaurante na Áustria, chamado de “O Elefante”. Saramago admite que foi a decoração sui generis do restaurante, figurativa da história que mais tarde viria a escrever, que despertou a sua curiosidade para a criação da obra literária. Contudo, "A Viagem do Elefante" não é totalmente baseada em factos verídicos, como os que enunciei anteriormente. Paradoxalmente foi necessário ficcionar para que o leitor percebesse a verdadeira história real.

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Por tudo isto, este livro representa uma metáfora da vida humana, pois, tal como acontece com o elefante Salomão, também nós, seres humanos, parecemos não deter controlo sobre o nosso destino, como é expresso na citação do livro: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Por vezes esse sitio corresponde ao que queríamos, noutras não. Por vezes esse sitio corresponde àquilo que esperavam de nós, noutras não. Sem ser spoiller, pois Saramago revela logo esse facto na apresentação do livro, o autor interessou-se pela história deste elefante devido ao fim que esse animal teve, quando depois de morrer lhe cortaram as patas para servir de bengaleiro à entrada do palácio de Maximiliano da Áustria, e de lá porem as bengalas, os chapéus, e as sombrinhas.

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Obviamente que devido a este final, o livro tem a ver com a morte, mas, tem sobretudo a ver também com aquilo que acontece depois. Foi esse aproveitamento caricato das patas dianteiras do elefante que impressionou o Nobel português. «Se não houvesse esse final, talvez não tivesse escrito o livro.» disse Saramago em 2008.

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Pois é esse final impactante que põe em causa tudo o que Salomão viveu anteriormente, ou melhor, tudo aquilo que através de Salomão as outras pessoas aprenderam/visionaram/debateram/apreenderam. É nesta encruzilhada entre realidade e ficção que Saramago nos puxa para o centro do trama, atribuindo-nos a função de decidir se a interpretação de um determinado personagem é, ou não, genuína. O que muitos não sabem é que em 2009, José Saramago realizou uma viagem de Lisboa a Figueira de Castelo Rodrigo, passando por paisagens e locais descritos n'"A Viagem do Elefante".

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 Saramago tinha a intenção de que essa jornada se tornasse um roteiro turístico, incentivando um número cada vez maior visitantes a explorarem o interior de Portugal, regiões muitas vezes indescritíveis em palavras. Ele acreditava que esses locais deviam ser vividos e descobertos pessoalmente. A Guarda é uma das cidades mais importantes no percurso de Salomão e sua comitiva em direcção à Áustria. In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e de Raíz | O luxo de não passar despercebido

@In bulla

A cidade dos 5 "f's" (farta, forte, fria, fiel, formosa), conhecida pela sua elevada altitude e pelas suas características medievais, é descrita com a riqueza de detalhes que Saramago emprega para imergir o leitor nas paisagens e nas experiências vividas pelos personagens. A inclusão de Guarda no trajecto sublinha ainda a importância das cidades históricas portuguesas e contribui para o encanto e a complexidade da narrativa.

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A passagem pela Guarda também destaca o contraste entre o quotidiano dos locais e o evento extraordinário da passagem de um elefante, algo que não fazia parte da vida comum das pessoas naquela época. Isso gera curiosidade e surpresa, elementos que Saramago utiliza para explorar a interacção entre as diferentes culturas e a reacção humana ao desconhecido.

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Hoje falo-vos "da minha viagem do Elefante" à zona da Guarda, passando por Bodiosa, Seixo do Côa e Rebordinho. Uma vez que Saramago utilizava a comida não apenas como um recurso narrativo para mostrar a logística da viagem, mas também como uma forma de explorar a cultura e os costumes das diferentes regiões por onde passavam, a gastronomia, como não poderia deixar de ser, vai ser assumir um papel de destaque nesta crónica.

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A nossa primeira paragem foi nO Monte, um restaurante dedicado a promover a região de Viseu, combinando a cozinha tradicional portuguesa das Beiras com toques de modernidade, enobrecendo a já famosa "cozinha de conforto". Foca-se na utilização produtos autóctones, como a Vitela de Lafões certificada, para construir pratos que desafiam o paladar de quem os visita, sempre com uma apresentação cuidadosa e sabores que surpreendem.

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A garrafeira é um ponto de orgulho, destacando, mais uma vez, a região Dão Lafões com vinhos seleccionados de excelente qualidade e que os donos orgulhosamente apelidaram de "garrafeira com história", pois cada referência possui uma narrativa que se cruza com a do restaurante. Desde a sua abertura em 7 de Junho de 2022, o Monte Restaurante continua a tradição familiar sob a batuta do Chef Marco Marques, com o auxílio indispensável da companheira Filipa Pereira na sala. O restaurante oferece um ambiente acolhedor com capacidade para até 100 pessoas, esplanada exterior e um parque para as crianças. 

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@Gula

A Sopa de castanha, barriga fumada, tosta de milho e cebolinho é uma generosa introdução ao cardápio, com um equilíbrio perfeito entre a doçura das castanhas e a profundidade do sabor da barriga fumada. A tosta de milho adiciona uma textura crocante, enquanto o cebolinho proporciona uma frescura que eleva o prato. Já o Folhado de queijo da Serra, mel e nozes é uma mistura contrastante de sabores, entre a cremosidade do queijo, a doçura do mel e a crocância das nozes. O Camarão em tempura de coco com molho sweet chili é uma autêntica explosão de sabores exóticos, e o Estaladiço de queijo de cabra, maçã Bravo de Esmolfe, esparregado e presunto de vitela de Lafões é uma composição cheia de alegria, intensidade e sabor. 

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A Espuma de boletos com crocante de presunto, gema de ovo, queijo de cabra e trufa é um hino à voluptuosidade elegante; e a Truta, vieira e carabineiro com texturas de cheróvia uma celebração dos frutos do mar apresentada de maneira sofisticada e inovadora. Antes das sobremesas o Tornedó de Lafões com puré de azeitona, boletos, foie gras e demi-glace acaba por ser uma boa metáfora para a experiência gastronómica que o restaurante promove. A carne tenra e suculenta é complementada pelo puré de azeitona saboroso e pelos boletos terrosos, enquanto o foie gras adiciona uma riqueza luxuosa e o demi-glace une o prato com profundidade e sabor.

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As sobremesas são, quanto a mim, o que verdadeiramente distingue O Monte (para ser justo, os produtos de Lafões também) e que merecem uma visita por si só. O Brownie de chocolate com caramelo salgado, suspiro de café e gelado de alecrim é uma combinação muito bem conseguida de sabores doces e salgados, com o gelado de alecrim a proporcionar um toque refrescante e inesperado. O Pão de ló húmido com espuma de queijo de cabra é uma delícia etérea, coma  textura leve e arejada do pão de ló a contrastar maravilhosamente com a cremosidade ligeiramente ácida da espuma de queijo de cabra.

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A Tartelete de limão, gengibre e mel oferece equilíbrio organoléptico, onde o calor do gengibre se mistura com a doçura suave do mel. Finalmente, a lindíssima e arrojada Pedra, uma sobremesa que combina chocolate em várias texturas com frutos silvestres e outros ingredientes secretos, é uma verdadeira surpresa para os sentidos. Cada elemento é meticulosamente preparado para oferecer uma variedade de sabores e sensações que culminam numa experiência inesquecível, com um bom toque dramático. Visitem o Monte, pois não se vão arrepender: cozinha de autor, tradição e inovação, haverá melhor combinação?

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A viagem seguiu para aquela que seria a nossa "casa" durante 3 dias, o In Bulla, cujo nome significa "na bolha" em latim, é um projecto familiar de reconstrução de edifícios degradados na pequena aldeia de Seixo do Côa, no concelho de Sabugal, Beira Interior. Este hotel rural, inaugurado em Outubro de 2023, visa criar um espaço acolhedor e harmonioso, combinando a simplicidade do ambiente rural com sofisticação e conforto de um 5 estrelas. Localizado numa aldeia com pouco mais de meia centena de habitantes, o In Bulla oferece uma experiência de tranquilidade e imersão na vida rural, proporcionando aos visitantes a sensação de viver dentro de uma autêntica aldeia portuguesa.

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@In Bulla

O alojamento dispõe de oito quartos com diferentes tipologias, todos com design contemporâneo e linhas direitas, garantindo um ambiente simultaneamente acolhedor e contemporâneo. Alguns quartos, entre os quais o que ficámos, possuem lareiras, prontas para serem acesas nos dias frios, aumentando ainda mais o conforto dos hóspedes. Quanto a nós, o maior destaque do In Bulla é o seu Spa, equipado com uma piscina infinita, sauna, banho turco, fonte de gelo, jacuzzi e salas de tratamentos que oferecem massagens chinesas. 

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A piscina, aquecida de modo a permitir a utilização durante todo o ano, está dividida entre o interior do Spa e o exterior, junto ao jardim, proporcionando um ambiente relaxante e revigorante. O alojamento oferece ainda a opção de reservar refeições, com cada casa equipada com uma kitchenette. O pequeno almoço, de índole sazonal, é entregue numa cesta no quarto.

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O In Bulla reflecte o vínculo às raízes e a essência da família que o criou, combinando conhecimento e experiência adquiridos ao longo dos anos com a genuinidade e simplicidade da aldeia. Os hóspedes têm a oportunidade de usufruir do melhor que as técnicas ancestrais de saúde e bem-estar podem oferecer, de forma orgânica e sustentável. Seja em regime de alojamento livre ou participando em programas personalizados, o In Bulla está preparado para nos/vos receber com hospitalidade, conforto e com aquele toque rústico que torna as coisas mais "caseiras".

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Voltemos aos pratos.  Entrar no Restaurante Gula, na Guarda, é revisitar os fenómenos sociais dos anos 90: globalização, cultura POP, urbanismo, tecnologia, interconectividade, activismo, mudança e experimentalismo. Os elementos decorativos do Restaurante Gula têm a particularidade e função de apresentar aos visitantes Toni e Rui, os mentores do Gula. Amigos de infância, partilharam grande parte das suas vidas. Decidiram partilhar também parte das suas vidas pensando no futuro, com o Gula.

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@Aquarius

A esposa do Chefe Toni, Andreia, é nutricionista de formação e desenhou o menu pensando na globalização que caracterizou a sua adolescência, mas também nas propriedades nutricionais de cada ingrediente, com o objectivo de oferecer refeições equilibradas e saudáveis. Andreia também é pasteleira. As sobremesas da casa são fruto da sua imaginação e amor pela arte. O ambiente é descontraído, clean e bem organizado. Concebido para que quem visita o Gula, seja para almoçar ou jantar, possa esquecer, ainda que por alguns momentos, o mundo e a vida lá fora e estar num tipo de universo paralelo, onde o ambiente, no geral, é uma homenagem à condição humana. Aquando da visita o que nos esperava lá fora era um forte nevão ;)

 In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e de Raíz | O luxo de não passar despercebido

O Camarão borboleta com molho sweet chilli foi um começo fantástico. O camarão, suculento e cozinhado no ponto, combinou maravilhosamente com o molho agridoce, criando um equilíbrio perfeito entre o picante e o doce, que despertou o paladar e deixando-nos ansiosos pelo que viria a seguir. As Asas de frango caramelizadas em molho de soja, mel e sementes de sésamo foram um verdadeiro deleite. O frango estava macio e suculento, com uma caramelização perfeita que lhe conferiu uma crosta untuosa e saborosa. As sementes de sésamo adicionaram um toque crocante adicional, enquanto o molho combinava a salinidade da soja com a doçura do mel, criando um sabor rico e complexo. 

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Os Croquetes de fumeiro com molho de mel e mostarda foram uma agradável surpresa. O sabor fumado era complementado pelo molho de mel e mostarda, que adicionou uma doçura equilibrada e um toque de acidez, resultando numa combinação bastante harmoniosa e rica. O Bao de camarão em panko, maionese de coco, lima e pickles foi, sem dúvida, o melhor prato. O camarão crocante envolto numa cobertura leve de panko, a suavidade da maionese de coco, o frescura floral da lima e a acidez dos pickles criaram um conjunto de sabores e texturas que nos conquistou. Este é daqueles que se lambe os dedos no final :P

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O Bife de alcatra com molho de presunto e espargos salteados manteve a bitola. A carne estava cozinhada na perfeição, tenra e saborosa, e o molho de presunto acrescentou uma profundidade de sabor irresistível. Os espargos salteados, frescos e crocantes, complementaram o prato, não o tornando cansativo. Para finalizar, o Jardim de Inverno foi uma sobremesa memorável. 

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A esponja de pistácio e alecrim, combinada com chocolate e creme de citrinos, ofereceu uma variedade de texturas e sabores que surpreenderam e encantaram. A suavidade do pistácio e do alecrim, a riqueza do chocolate e a acidez refrescante dos citrinos criaram um equilíbrio perfeito que encerrou a refeição de forma sublime. Fica evidente, que no Gula cada prato é preparado com uma atenção meticulosa aos detalhes e uma paixão evidente pela culinária. É um local onde a tradição, descontracção e a inovação se encontram, resultando numa experiência que merece ser repetida.

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@In Bulla

Paragem seguinte, talvez o restaurante mais afamado da Guarda: o Aquarius.  O Restaurante Aquarius é um espaço elegante e acolhedor, situado na cidade da Guarda, onde o ambiente familiar e a elevada atenção ao cliente garantem todo o conforto e tranquilidade. Este local concilia a mestria na confecção com os mais genuínos produtos da cozinha portuguesa, disponibilizando um menu único e variado que promete satisfazer até os paladares mais exigentes.

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 No Aquarius, há a possibilidade de apreciar autênticas obras de arte enquanto desfrutamos de uma refeição requintada, acompanhada por uma selecção musical cuidadosa. Com 25 anos dedicados à arte gastronómica e aos melhores vinhos, este restaurante e galeria de vinhos estimulam todos os sentidos dos seus visitantes. Sob a direcção de Jorge Silva, o Aquarius tornou-se uma referência nacional, reconhecida pela sua dedicação à excelência e inovação culinária. Uma refeição aqui é uma autêntica viagem gastronómica que combina tradição e modernidade, num ambiente que convida a relaxar e apreciar cada momento.

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 Desde as entradas despretensiosas mas soborosíssimas, até aos pratos principais cuidadosamente elaborados pelo chef Paulo Fonseca, cada refeição é uma celebração dos sabores da região. O restaurante, que pode parecer escondido à primeira vista numa zona movimentada da Guarda, revela-se uma autêntica bola de sabão gastronómica, onde a azáfama exterior se transforma em qualidade, paz e requinte no interior. 

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Como vos disse anteriormente, além da excelente gastronomia, o restaurante destaca-se pela sua vasta e selectiva carta de vinhos, especialmente com as referências da Beira Interior, que complementam de modo indelével os pratos servidos. A experiência começa com o Estaladiço de queijo de cabra acompanhado de doce de abóbora e puré de maçã, uma entrada que cativa pelo contraste entre a crocância do queijo e a suavidade do puré de maçã, equilibrado pelo doce de abóbora. Esta combinação de temperaturas, sabores e texturas é uma verdadeira delícia.

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@deRaíz

A Tábua serrana, composta por queijo, presunto e lombo cabeceiro, é uma celebração dos sabores tradicionais da região, proporcionando uma viagem gastronómica pela autenticidade dos produtos locais. As Gambas flamejadas com alho são outro dos destaques, apresentando-se suculentas e bem temperadas, com o alho a realçar o sabor natural do marisco. A Salada gourmet de salmão, tosta e maçã brinda-nos frescura e leveza, perfeita para os amantes de pratos mais saudáveis. A combinação do salmão com a maçã e a crocância da tosta é refrescante e harmoniosa. No que toca aos pratos principais, o Bacalhau à lagareiro é preparado segundo manda o canône gastronómico da região, mantendo a suculência e a textura característica deste prato tão português. Na Posta de corvina do Atlântico, servida com açorda de peixe, estaladiço de bacon e grelos a frescura do peixe une-se ao sabor intenso do bacon e à riqueza da açorda de modo muito deleitoso.

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Os Nacos de vitela jarmelista são uma verdadeira tentação, destacando-se pela qualidade da carne e pela sua preparação irrepreensível. Para os mais aventureiros, o Canguru com mistura de pimentas oferece uma experiência exótica e surpreendente, com a carne tenra e bem condimentada. As sobremesas caseiras do Aquarius são o final perfeito para este repasto. A tarte de amêndoa, em particular, destaca-se pela sua textura crocante, aroma fumado e sabor intenso. Por tudo isto,  Aquarius é, sem dúvida, um destino imperdível para os amantes da boa mesa e da arte de bem receber.

 In bulla, O Monte, Gula, Aquarius e de Raíz | O luxo de não passar despercebidoA última paragem ocorre no, até ao momento, restaurante revelação do ano para o blogue.  O Restaurante DeRaiz, situado em Rebordinho, Viseu, está assente numa casa antiga reconstruida, onde o linho e o granito se fundem, apresentando uma experiência culinária única que transporta os clientes para memórias antigas e revela o legado dos antepassados, sempre com um olho na modernidade.

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Quando Inês Beja e Nuno Fonte decidiram investir na simpática e pacata localidade de Rebordinho, muitos duvidaram do sucesso do empreendimento. No entanto, e fazendo jus à máxima "quem não arrisca, não petisca", desde a sua inauguração no Verão de 2019, o Restaurante DeRaiz tem-se afirmado como um verdadeiro ponto de encontro no que à gula diz respeito, atraindo inúmeros apaixonados pela boa gastronomia. Formados na área da gastronomia e com experiência em restaurantes de renome, como o estrelado Mesa de Lemos, Inês e Nuno souberam criar clientela e conceito com uma proposta diferenciada. A todos os clientes, o restaurante oferece uma cortesia de uma flute de espumante ou vinho regional, estabelecendo desde logo um elevado padrão de hospitalidade, saber fazer e cortesia.

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O espaço foi renovado com cuidado e esmero, mantendo o charme de uma casa tipicamente beirã com granito, lareira e objectos que nos remetem para as casas do antigamente, criando um ambiente acolhedor e familiar. A cozinha do DeRaiz destaca-se pela utilização de produtos maioritariamente regionais, seguindo a filosofia de fazer tudo de raiz, desde caldos e molhos até ao pão de massa-mãe. O nome do restaurante é também uma bonita homenagem ao legado dos costumes, das tradições e das receitas, agora "vestidas" com traje de gala.

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Entre as entradas emblemáticas, destacamos os Ovos Verdes da Avó Raquel, apresentados com criatividade num ninho de alho francês frito, e que revelam um equilíbrio perfeito entre a crocância do alho e o sabor delicado dos ovos verdes; os Pastéis de Massa Tenra da Avó Nazaré, cuja massa tenra e o recheio suculento nos transportam para as memórias de refeições familiares; a Tarte de Figo, Cebola e Presunto de Porco Preto Alentejano (divinal!!!) que é uma combinação sofisticada de sabores doces e salgados (quase a roçar o decadente, no bom sentido da expressão) , e o Pastel de Javali, cheio de profundidade e sabor. Já o Polvo do Algarve, cozinhado com vinho tinto do Dão e servido com aipo, batata doce e coentros, é uma ode à cozinha regional com um empratamento elegante e contemporâneo.

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O Pato assado com arroz de forno, salada de laranja e pinhão tostado destaca-se pela sua combinação harmoniosa de texturas e sabores. A carne tenra do pato, o arroz perfumado e a frescura da salada de laranja com o toque crocante dos pinhões criam uma experiência gustativa muito prazerosa. Nas sobremesas, o destaque vai para o Pão de Ló Húmido com Azeite DeRaiz, Flor de Sal e Gelado de Iogurte de Cabra. Surpreende pela sua simplicidade sofisticada, onde o pão de ló húmido encontra a riqueza do azeite e a suavidade do gelado de iogurte. Cada prato no DeRaiz não evoca "só" a tradição, mas também apresenta uma surpresa e um toque estético que nos remete para a alta gastronomia francesa, tornando cada refeição uma verdadeira viagem sensorial. 

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Assim, este restaurante é um verdadeiro tributo à essência da cozinha portuguesa, onde cada refeição é uma celebração do passado, um brinde ao presente e uma promessa de regresso ao futuro. A dedicação de Inês e Nuno à gastronomia de qualidade e à recuperação dos sabores tradicionais, aliada à inovação e à atenção aos detalhes, fazem do DeRaiz um destino obrigatório para os amantes da boa comida e das experiências autênticas. Com tempo, este casal, verá um céu mais estrelado. Vai uma aposta? :P O DeRaiz acaba por ser, também, um bom símbolo para o que vivemos nos dias a que se refere esta crónica.

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A citação de Saramago, "É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós", encapsula perfeitamente a essência do que vivemos nesta nossa "viagem do Elefante". Todos os amigos que visitámos, situados em pequenas aldeias, vilas e cidades longe dos grandes centros urbanos, oferecem uma pausa revitalizante do quotidiano, permitindo que os visitantes redescubram e apreciem a riqueza das tradições, a autenticidade dos sabores e a beleza da simplicidade rural. Ao sair das nossas rotinas e imergir nestes refúgios de tranquilidade e cultura, conseguimos ver e valorizar não apenas a região e os seus tesouros gastronómicos, mas também a nossa própria essência, numa viagem que nos reconecta com as nossas raízes e nos oferece uma nova perspectiva sobre o que significa bem-estar e hospitalidade. Nestas terras, o viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença.

 

 

 

 

Novos lançamentos Noval | O Deus das coisas que não são pequenas

"Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de começos e sem fins, e tudo era para sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos, juntos, como eu, e separadamente, individualmente, como nós. Como se fossem uma rara espécie de gémeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas... E isso são só as pequenas coisas.” Arundhati Roy

Novos lançamentos Noval

"O Deus das Pequenas Coisas" de Arundhati Roy é um romance que ocorre maioritariamente na pequena cidade de Ayemenem, no estado de Kerala, na Índia. Narra a história da família Ipe ao longo de várias décadas. O foco principal da história está nos gémeos Esthappen e Rahel, que nos leva a perceber o modo como o ambiente físico, cultural e social de Ayemenem molda as vidas e identidades destes irmãos. A narrativa alterna entre dois períodos: 1969, quando os gémeos tinham sete anos, e 1993, quando Rahel retorna a Ayemenem após alguns anos a viver no exterior.

Novos lançamentos NovalCulturalmente, Ayemenem é um microcosmos das complexas hierarquias sociais da Índia. A rígida estrutura de castas e as normas sociais desempenham um papel fundamental no enredo. O relacionamento proibido entre Ammu, a mãe dos gémeos, e Velutha, um intocável, desafia essas normas e resulta em consequências trágicas. A transgressão das barreiras de casta é vista como uma violação das regras sociais estabelecidas, evidenciando o modo como o ambiente cultural pode restringir e moldar a vida das pessoas. 

Novos lançamentos Noval

O ambiente físico de Ayemenem desempenha um papel crucial na formação das identidades dos personagens. A sua paisagem por vezes austera é descrita de forma lírica e vivida, criando um cenário que influencia directamente os acontecimentos que pincelam o livro. Este ambiente não é apenas um pano de fundo, mas uma força activa que molda a vida e as emoções dos habitantes. A constante presença da natureza e o clima opressivo, muitas vezes, reflectem os estados emocionais dos Ipe, amplificando as suas experiências, quer de de alegria, quer dor. Se esta família pudesse ser metamoforizada num vinho, Ayemenem seria o seu terroir, pois este ambiente actua como uma força invisível e omnipresente que define as características e o destino das pessoas/vinhos.

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O conceito de terroir no vinho, esse Deus das pequenas coisas, refere-se à combinação de factores naturais e culturais que influenciam o cultivo da uva e a produção do vinho. Esses factores incluem o solo, o clima, a topografia e as práticas vinícolas de cada região. Cada um destes elementos contribui para o sabor, aroma e personalidade únicas do vinho, tornando-o uma expressão directa do seu berço.

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No livro de Arundhati Roy há um rio que assume um papel principal, o rio Meenachal, onde no Inverno ocorrem chuvas torrenciais, no Verão surge um calor abrasador, na Primavera desperta uma vegetação exuberante, e no Outono um manto melancólico de folhas cobre as suas margens.  Tudo isto vai criando um cenário que influencia directamente as emoções e os eventos da história. A constante presença da natureza reflecte e intensifica os estados emocionais dos personagens, assim como o terroir molda as nuances e complexidades de um determinado vinho.

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No terroir dos vinhos que vos falo hoje, há também um rio que atrai para si todas as atenções: o rio Douro.  Localizada no coração do Douro, a Quinta do Noval desfruta de uma posição privilegiada. Com seus 192 hectares de vinhas classificadas como letra A, é plantada exclusivamente com as castas mais nobres da região: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinto Cão e Sousão.

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As parcelas da vinha apresentam uma diversidade geográfica notável, variando em altitude de 100m a 500m e expondo-se a todos os pontos cardeais. O solo, predominantemente de xisto com fragmentos de argila em mistura variável, contribui para nuances únicas nos vinhos, reflectindo a magia da Quinta do Noval.

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A cultura da vinha na Quinta do Noval foca-se actualmente na replantação com uma única casta adaptada a cada parcela específica, levando em consideração altitude, exposição e o tipo de plantação da vinha. Os históricos socalcos em pedra de xisto, que datam de tempos remotos, permanecem como uma imagem icónica da propriedade. Com todo este legado, a Quinta do Noval destaca-se como o único exportador histórico de Vinho do Porto que leva o nome de sua quinta e produz Porto Vintage a partir de uma única parcela, quando declarado.

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Esse terroir bem vincado emprestou fama, reconhecimento e excelência aos vinhos do Porto da Noval, sendo o Nacional o seu pináculo, no entanto, esse contexto físico-cultural está a colocar também os vinhos tranquilos num patamar que, para os mais desatentos, seria inesperado há alguns anos. Falemos então de alguns desses vinhos que provei recentemente.

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O Cedro do Noval Branco 2023 (18.50 €, 90 pts.) de cor dourada clara e cristalina exibe aromas complexos a pêssego, pimento verde, flor de limoeiro, flores brancas, cedro e uma bela pedregosidade. No palato é seco, tem bom volume, excelente acidez, equilíbrio e uma ligeira untuosidade que lhe fica muito bem.
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Por sua vez o irmão aristocrata Cedro do Noval Reserva Branco 2023 (35.50 €, 92 pts.) de traje dourado um pouco mais carregado exibia orgulhosamente esteva, limonete, alecrim, toranja, damasco, baunilha e uma ligeira tosta. Na boca é seco, fresco, harmonioso, gordo, complexo e longo. É daqueles para guardar algumas garrafas e ir conversando com ele de vez em quando.

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Gostei muito do rubi cristalino Quinta do Noval Tinto Cão 2021 (39.50 €, 92 pts.), muito por culpa das suas notas ricas em groselha, cerejas, amoras, cassis, menta e pimenta preta. No palato mostra-se seco, fresco, austero, especiado, alegre e longo.

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O Quinta do Passadouro Vintage 2022 (75.50 €, 93 pts.), apesar de não possuir uvas da Noval, é produzido com uma selecção rigorosa dos melhores lotes de vinhos provenientes de diferentes parcelas da Quinta do Passadouro, no vale do Pinhão, sendo mais tarde engarrafado pela Noval. De cor rubi quase densa e opaca emana cassis, ameixa seca, mirtilos, chocolate preto, pimenta preta, esteva e urze. Na boca é austero, fresco, longo e sumarento.

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Para fechar a prova o rubi-violeta Quinta do Noval Vintage 2022 (95.50 €, 96 pts.).  Tem um nariz muito frutado (frutos silvestres, ameixa preta e mirtilos), com pimenta, resina e algum sous-bois. Na boca é denso, rico, opulento, equilibrado, fino, complexo, fresco, assertivo e bastante ponderado.  

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São vinhos que pensam em si mesmos, juntos, como eu, e separadamente, individualmente, como nós. Como se fossem uma rara espécie de gémeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas... E isso são só as pequenas coisas que um terroir único consegue transmitir ;)