"Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende — é esta. A comida que o meu estômago deseja — é esta. O chão que os meus pés sabem pisar — é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal." Miguel Torga
Miguel Torga, uma das grandes vozes da literatura portuguesa do século XX, pintou em "Contos da Montanha" um retrato intenso da vida nas regiões serranas, onde a dureza da paisagem se espelha umbilicalmente na vida dos seus habitantes.
Publicada pela primeira vez em 1941, esta obra capta a essência das terras altas, lugares inóspitos, mas de uma beleza austera e uma força simbólica muito profunda, enraizada na alma das suas gentes.
As histórias narradas por Torga revelam uma simbiose perfeita entre o ser humano e a montanha, transformando este espaço agreste num palco onde se desenrola o drama da existência, sempre marcado pela luta contra a natureza e o destino, o tal fado muito nosso.
As personagens de Torga são moldadas pela montanha, como se de peças de barro se tratassem, não apenas em termos físicos, mas também espirituais. Estas vivem imersas num cenário de granito e silêncio, onde o vento é o único companheiro constante.
Nestes contos, as serras são tanto refúgio quanto prisão. Representam uma barreira física e psicológica, um limite que os homens e as mulheres que por ali vivem enfrentam com estoicismo e resistência.
Como pastor de palavras, Torga guia-nos por esta terra onde a solidão, o sacrifício e a fé se entrelaçam. A montanha, mais do que uma paisagem, é um símbolo da condição humana: elevada, misteriosa e implacável, no entanto, familiar.
Nela, a comunidade circundante encontra não só a adversidade, mas também a essência da sua existência, um reflexo da sua pequenez perante o infinito da natureza.
As montanhas que Torga descreve ficam na sua grande maioria na região de Trás-os-Montes, mas há também algumas referências a serras do centro de Portugal, que apesar do menor destaque no número de palavras, estão profundamente enraizadas na sua própria vivência.
Apesar de Trás-os-Montes ser a terra onde nasceu e de onde verdadeiramente nunca saiu, como escreveu mais tarde, a região centro sempre o fascinou pela ruralidade austera, ainda assim, de nalgum modo, sedutora.
Filho de lavradores, deixou a casa dos pais aos 10 anos para trabalhar e ganhar alguns tostões. Com esses bolsos cheios de quase nada tira o curso de medicina em Coimbra e é por lá passa grande parte da sua vida, ligando-se ainda mais à região centro.
Historicamente, estas terras sempre foram marcadas por uma agricultura de subsistência, onde o lavrador é o herói trágico que enfrenta, ano após ano, o rigor do clima e a pobreza do solo.
Não é por acaso que, nos contos de Torga, a terra desempenha um papel central, não apenas como meio de sobrevivência, mas como espelho da alma. Cada sulco cavado no solo é, simultaneamente, uma metáfora para o trabalho árduo e para o destino inevitável que estas pessoas parecem aceitar com uma serenidade quase épica.
Essa terra, árida e ao mesmo tempo fértil em histórias, é também palco de tradições gastronómicas que, como as histórias de Torga, resistiram ao tempo. A gastronomia desta região é um reflexo desta paisagem de contrastes.
Os pratos tradicionais, simples mas robustos, nascem da relação íntima entre o homem e a terra. O cabrito assado, as chanfanas e os enchidos são herdeiros de uma cozinha que valoriza o essencial, tal como os contos de Torga exploram as verdades fundamentais da existência.
Há uma certa frugalidade digna nestes pratos, tal como há uma economia de palavras nos textos do escritor, mas em ambos encontramos uma profundidade que só é revelada àqueles que os saboreiam com atenção.
Neste passeio pela vida, obra e berços de Torga, torna-se evidente a profunda ligação entre a literatura deste nome maior do humanismo português e a gastronomia local.
Ambos nascem de um respeito intrínseco pela terra, pelos seus recursos e pelos ritmos naturais que moldam o quotidiano. Assim como Torga explorou a dureza e a beleza da vida nas montanhas, também os pratos tradicionais desta região revelam a essência de uma gastronomia que, tal como os contos, se recusa a ser esquecida.
Nas serras e nas mesas, encontramos histórias que falam de resiliência, de luta e de um amor profundo pela terra que nos nutre, tanto com palavras quanto com sabores. É sobre algumas delas e com algumas delas, que vos falo hoje ;)
Nesta busca pelo elo comum entre palavra e sabor, visitámos três restaurante desta região. O Xisto ° Restaurante em Louçainha , o Cordel Maneirista e o Oak em Coimbra. A estes acrescentamos um quarto, o Lote 16 , restaurante do Boutique hotel Lugar do Ourives que escolhemos para este passeio pela mundo literário-gastronómico de Torga.
O Lugar do Ourives Boutique Hotel, situado na pacata e pitoresca vila de Febres, a poucos quilómetros de Coimbra, oferece uma experiência que alia o requinte à tradição local. Este hotel, com a sua arquitectura acolhedora, reflecte a serinidade do interior português, sem abdicar de um toque contemporâneo.
A decoração de cada quarto é cuidadosamente pensada, criando um ambiente onde o conforto e o estilo se encontram. Com áreas comuns elegantemente decoradas, como o salão partilhado e o terraço, é um lugar onde a modernidade convive harmoniosamente com a quietude rural.
A localização do hotel, próximo de Coimbra, torna-o ideal para os que desejam explorar a história e cultura da região, sem se afastar do refúgio tranquilo que oferece. A vila de Febres, além do seu charme bucólico, é um ponto de partida perfeito para visitar a Serra da Lousã e outros locais históricos.
Os hóspedes elogiam frequentemente o serviço personalizado, que reflecte a hospitalidade típica da região, e destacam a qualidade do pequeno almoço, onde se privilegia o uso de produtos locais, frescos e confeccionados no momento. Há a possibilidade de harmonização com espumante. Não é preciso dizer mais nada pois não? :P
O seu restaurante, o Lote 33 é uma celebração dos sabores tradicionais da região, reinterpretados com um toque contemporâneo num ambiente de taberna-bar moderno. É bastante acolhedor, com uma decoração moderna e minimalista, complementada pela simpatia do atendimento.
Os pratos destacam-se pela frescura dos ingredientes locais, como o fresco Ceviche com peixe do dia, pico de gallo, coentros e leite de tigre; os generosos Rotos à Lote com batata frita, alheira, bacon, queijo, cebola roxa picada, molho à Lote e ovo a baixa temperatura; as saborosíssimas Gambas al ajillo com chips de alho frito; e as surpreendentes Bochechas de porco panadas em panko.
Nos principais, o destaque vai para o mutifacetado Tataki de atum com salsa chipotle, guacamole, salsa crema e pickle de rabanete, o voluptuoso Risotto de cogumelos; mas sobretudo para o Entrecosto a cair do osso com molho barbecue caseiro.
Tinha um sabor irresistível que combinava a suculência da carne, que se desfazia com facilidade, com a doçura e o toque defumado do molho barbecue artesanal, criando uma experiência muito rica e reconfortante. É daqueles que nos faz lamber os dedos no final ;)
Nas sobremesas, O Petit gâteau de chocolate negro com espuma de lima combinava a intensidade e riqueza do chocolate com a acidez cítrica, criando um contraste vibrante e irresistível. O Brownie com gelado de nata equilibrava a textura densa e crocante do bolo com a suavidade e cremosidade do gelado, trazendo conforto em cada colherada. Já o Cheesecake com maracujá e lima conjugava a doçura e a acidez de forma refrescante, encerrando a experiência com um toque exótico e leve.
O restaurante oferece ainda uma quantidade de bowls, hambúrguers, vinhos, bebidas brancas e cocktails bastante assinalável. Tem o toque de Torga, materializado na autenticidade dos sabores locais, reinterpretados com um toque contemporâneo, uma harmonia que sempre esteve presente na obra do autor ao exaltar a simplicidade e a essência da vida rural portuguesa. Um destaque merecido para a proprietária Ângela, uma "formiga" que nunca para, sempre em busca da máxima satisfação dos clientes, no hotel e no restaurante. Quer que o hotel se transforme numa casa familiar, e consegue-o...
Depois de uma viagem de 60 km chegámos Xisto ° Restaurante Louçainha. Um verdadeiro refúgio gastronómico localizado na serra do Espinhal, rodeado por uma paisagem natural deslumbrante.
O ambiente rústico e acolhedor do restaurante ecoa a simplicidade autêntica da aldeia de Louçainha, com uma decoração que combina materiais naturais como madeira e xisto, criando uma atmosfera muito aconchegante e convidativa.
A lareira, a vista panorâmica para as montanhas e a proximidade com as piscinas naturais adicionam um charme especial ao espaço, tornando-o ideal para quem deseja aliar boa comida à tranquilidade da montanha.
A gastronomia do Xisto é um tributo aos sabores tradicionais da região centro de Portugal, com um foco em pratos como a Fritada de peixe, a Morcela com chouriço, os Ovos mexidos com favas e espargos, e nas sobremesas como as Fatias d'elas (uma espécie de rabanada, feita de pão de Ló em calda de jeropiga), a Barriga de freira com laranja e a Mousse de chocolate com laranja.
Fiquei completamente rendido à Coxa de Pato com batata assada e grelos. Uma ode à cozinha tradicional portuguesa, com um toque rústico e caseiro que ressaltava os sabores autênticos da serra. O pato foi cuidadosamente cozinhado de modo a que a carne ficasse suculenta e tenra, impregnada com as notas aromáticas de alho, do louro e do vinho. A batata, assada em forno a lenha, absorve os sucos do pato, resultando numa textura macia por dentro e crocante por fora, com um leve toque de alecrim que elevava o sabor.
Os grelos servidos como acompanhamento contribuíam para o equilíbrio o prato com a sua leveza e frescura. Levemente refogados em azeite e alho, eles traziam também uma amargura suave que contrastava perfeitamente com a riqueza do pato e a rusticidade das batatas. A combinação dos três elementos – a carne de pato, as batatas assadas e os grelos frescos – promoveram um momento reconfortante e robusto, que celebrava o melhor da cozinha rural portuguesa, honrando a simplicidade e a riqueza da gastronomia da montanha.
A utilização de ervas frescas e métodos de preparação tradicionais evidencia o respeito pelo canône gastronómico da região. Nota ainda para o pão caseiro e o azeite local, servidos no início da refeição, que preparam o paladar para o banquete que se segue.
No Xisto – Restaurante Louçainha, cada prato traz consigo a memória da terra e da serra, onde, como bem disse Miguel Torga, "o tempo sem pressa que a terra nos ensinou" se materializa em cada sabor rústico, permitindo-nos saborear a autenticidade e a ruralidade que definem esta região.
Paragem seguinte: o Cordel Maneirista em Coimbra. Um dos restaurantes que há mais tempo estava na minha lista de visitas, mas que apenas conhecemos este ano.
Oferece uma proposta gastronómica que procura combinar harmoniosamente tradição e contemporaneidade, inspirando-se nas raízes da culinária portuguesa com uma abordagem inovadora. Situado num espaço de design minimalista e sofisticado, o restaurante convida os comensais a um ensaio onde cada prato é uma fusão cuidadosa de sabores locais, reinterpretados com um toque moderno.
A decoração, com linhas simples e tons neutros, complementa a filosofia do restaurante: a elegância reside na simplicidade, no bom gosto e na qualidade do produto, tanto na estética quanto na cozinha.
O menu do Cordel é uma celebração dos produtos da terra, com pratos que destacam ingredientes sazonais e locais. Começa com um Composto Grande com pão, azeitonas com tomilho serpão da lousã, azeite transmontano, queijo rabaçal e presunto de barroso para despertar o palato.
Prossegue com uns saborosíssimos Cogumelos salteados com ervas do campo, uns alegres e intensos Folhadinhos de queijo do Rabaçal e compota de tomate e uma generosa Sopa de peixe que aprisionava as mais diversas dimensões do mar.
Nos peixes o Polvo com batata-doce e legumes grelhados e o Robalo em espumante da Bairrada e tomate fresco ofereciam uma interpretação refinada de clássicos portugueses, onde a textura delicada do peixe era equilibrada pela cremosidade dos acompanhamentos e pela acidez dos molhos. Nas sobremesas, um Cordel de doces: o Pudim das Clarissas, os Pasteis de Santa Clara, o Bolo de Noz com ovos moles e o Bolo de bolacha à Cordel. Propostas que ainda agora, enquanto escrevo, me fazem salivar :P
No entanto, o aplauso maior do almoço vai direitinho para o inusitado Arroz de perdiz com castanhas e cogumelos, onde a ave surgiu cozinhada com precisão e acompanhada por legumes no ponto certo, exaltando o sabor natural dos ingredientes, sem excessos. A alma terrosa dos cogumelos e o toque doce das castanhas a envolver a carne tenra e fina da perdiz é uma autêntica sinfonia gastronómica. Entrou para a lista dos meus pratos favoritos ;)
A apresentação dos pratos, simples e cuidadosamente montada, reforça a premissa de que a essência está nos detalhes. O serviço é atencioso, discreto e eficiente, proporcionando uma experiência tranquila e agradável. Apesar da inovação presente em cada prato, o Cordel consegue manter uma austeridade quase poética, onde a sofisticação não vem da extravagância, mas da contenção.
Como bem expressou Miguel Torga, "há uma certa elegância na austeridade", e o Cordel Maneirista encarna isso ao oferecer uma gastronomia que brilha pela sua pureza e respeito pelas tradições, sem perder a modernidade que a cidade de Coimbra sempre representou.
Última paragem e talvez a mais surpreendente: Oak Food, Beer & Wine, em Coimbra. Sobressai devido à sua abordagem descontraída e criativa, quase provocadora, à gastronomia, disponibilizando pratos tradicionais, com um toque contemporâneo e sempre com uma pitada de ousadia. O ambiente acolhedor, decorado com elementos de madeira e iluminação suave, cria uma atmosfera ideal para desfrutar de uma refeição tranquila, seja em grupos ou num jantar a dois.
A carta de cervejas artesanais e vinhos é uma atracção à parte, especialmente as cervejas, com uma selecção cuidadosamente efectuada para harmonizar com os pratos oferecidos, realçando ainda mais os sabores daquilo que nos chega à mesa.
O grande destaque da experiência gastronómica no Oak é a Francesinha de Frango e Alheira, que surpreende tanto pela originalidade, quanto pelo sabor. O prato utiliza um delicioso pão de beterraba, que introduz um toque colorido e levemente adocicado. O frango marinado e grelhado, suculento e bem temperado, combinava na muche com a alheira portuguesa, criando uma mistura rica e inesperada.
O queijo derretido, o fiambre, o molho encorpado e o ovo escalfado coroavam o prato, enquanto a cebola frita adicionava uma textura crocante, completando o contraste de sabores e texturas que tornam essa francesinha uma versão única e inovadora do clássico. Tem mais camadas e a untuosidade surge controlada pela acidez: é uma francesinha de saltos altos, com rímel e batom, que lê Saramago e faz cross fit :P
O serviço é simpático e informal, reflectindo o espírito jovem e vibrante do Oak, onde a combinação de comida criativa e bebidas de qualidade se encontram no centro da proposta gastronómica. A Francesinha de Frango e Alheira, com seus ingredientes bem escolhidos e executados com precisão, é uma clara demonstração de como o Oak consegue inovar sem perder o respeito pelas tradições gastronómicas portuguesas. Esta casa, é ao mesmo tempo, acessível e repleta de personalidade.
Assim como Miguel Torga expressa o dilema de pertencer e não pertencer, também nós nos perdemos e nos reencontramos através dos sabores e dos lugares que visitamos. No Lugar do Ourives Boutique Hotel, a sofisticação tranquila faz-nos sentir transplantados para um refúgio moderno, mas onde o espírito rural ainda floresce. Cada restaurante—do rústico Xisto, com seu pato suculento e sabores serranos, ao Cordel Maneirista, onde a austeridade elegante de Coimbra se reflectia em pratos sofisticados, e o provocador Oak, que ousa reinventar tradições—oferece uma linguagem gastronómica que o nosso paladar reconhece como sua. Em cada refeição, em cada prato, sentimos o peso da terra e a verdade de que, apesar de nos perdermos em novas experiências, são essas raízes que nos sustentam, sejam elas literárias ou culinárias, e nos devolvem à nossa essência.