The Lince Santa Clara & Oculto | A Liturgia do Gesto
“A beleza do cosmos é dada não só pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade.” Umberto Eco
Em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o mosteiro não é apenas cenário, é personagem. Cada corredor, cada vitral, cada livro velho na penumbra da biblioteca, cada sombra projectada pelas grades das janelas geladas, compõem uma tapeçaria de ideias, silêncio, saber e dúvida.
O mosteiro de Eco é um microcosmo onde a história, a linguagem e a espiritualidade se entrecruzam. Um lugar onde o conhecimento se cultiva no tempo, nas leituras lentas, no som distante dos incensos, nos ecos de discursos que se perderam no eco das abóbadas.
É aí que percebemos: o silêncio tem voz, a pedra tem memória, e o sagrado pode ser também humano, dúvida e mistério.
Mas há outra revelação nessa obra: a de que os livros, tal como os espaços que os abrigam, são simultaneamente relicários do passado e ferramentas para ler o futuro.
Um livro é uma forma de continuidade: quando o abrimos, abrimos também um tempo que nos antecede e, muitas vezes, compreendemo-nos melhor o que vai acontecer nas suas entrelinhas.
Em cada biblioteca há um pouco de claustro e de laboratório, um espaço para o recolhimento, mas também para a reinvenção. E é por isso que os livros continuam a ser tão modernos: porque nos ligam ao essencial, àquilo que se conserva não por tradição cega, mas por sabedoria provada.
Os mosteiros foram, e são, espaços de clausura, sem dúvida. Mas também foram lugares de invenção: de preservação do passado, de diálogo com o que virá.
Nos seus claustros cresceram a Matemática, a Filosofia, a poesia, a ciência natural; nas suas cozinhas desenvolveu-se doçaria imortal, nas bibliotecas escreveram-se bestiários; e nos seus jardins cultivou-se a paciência.
São templos de contemplação, sim, mas também de renovação, de resistência interior, de passagem de gerações. E quando discutimos modernidade, não é raro descobrir que muitos dos nossos desejos contemporâneos, o conforto, o silêncio digno, a estética apurada, a qualidade regenerada, tiveram já morada nesse legado monástico.
Porque modernidade não precisa de ser ruptura. Pode ser continuidade com inteligência: reavivar sem apagar, modernizar sem se divorciar da raiz.
O que um mosteiro nos ensina é que o tempo bem ordenado, o espaço bem pensado e a tradição mantida com respeito são elementos de puro luxo. O luxo do essencial: o tempo, a luz, a proporção, o repouso interior.
Ao longo da história, os lugares de clausura foram também lugares de revelação. Na serenidade das celas, escreviam-se tratados e inventavam-se mundos.
Nos corredores, discutia-se filosofia, observava-se o céu e ouvia-se o silêncio. Aquilo que hoje chamamos de suntuosidade, tempo, atenção, contemplação, já existia ali, só que em forma de ritual.
Talvez seja por isso que alguns espaços antigos se prestem tão bem à reinvenção: porque guardam, nas pedras e nas proporções, uma espécie de sabedoria sobre o essencial.
Um saber-fazer que não se perdeu, mas que agora se transfigura. O conforto e a sofisticação não surgem aqui como adição artificial, mas como natural extensão de um legado. O que era recolhimento, tornou-se repouso. O que era regra, tornou-se ritmo. O que era voto, tornou-se escolha.
Indo ao significado profundo das palavras, o The Lince Santa Clara, em Vila do Conde, está instalado num antigo convento, e não num mosteiro, e isso, ali, faz toda a diferença. Se os mosteiros se voltam para dentro, cultivando o silêncio e a contemplação num espaço fechado e autónomo, os conventos abrem-se ao mundo, integrando-se nas cidades e nas comunidades, onde a hospitalidade, o cuidado e a partilha se tornam formas de presença, missão e acolhimento. É essa vocação aberta, de escuta e diálogo com o que está fora, que hoje se reencontra, subtilmente transformada, em cada gesto deste lugar.
Nos seus 87 quartos e suítes, cada espaço foi desenhado como se preservasse a alma original do Convento de Santa Clara. Os nomes das suítes evocam figuras históricas, enquanto as texturas interiores fundem a pedra original com madeiras nobres, tecidos suaves e detalhes artesanais que reavivam memória e conforto.
A luz que entra pelas janelas altas parece dançar sobre azulejos antigos; os tectos mansardados deixam adivinhar o céu em noites enluaradas. Há quartos Heritage onde se ouve o eco do passado, suítes amplas que respiram contemporaneidade. É um convite para ficarmos, para nos demorarmos, para sermos sentidos.
Se a contemplação for companhia, o restaurante Mosteiro acompanha com graça: o menu é curto, mas elegante, feito de escolhas bem ponderadas e produtos locais trabalhados com leveza e criatividade. A gastronomia tradicional portuguesa é mais do que uma herança culinária, é um livro aberto de sabores que contam a história do país em cada garfada.
Neste restaurante, essa tradição ganha nova vida pelas mãos experientes de D. Júlia (a do afamado restaurante em nome próprio de Braga), que transforma ingredientes locais em pratos memoráveis, repletos de alma e afecto. Aqui, o polvo “à lagareiro” partilha mesa com o borrego assado no forno e o peixe grelhado acabado de chegar da lota, numa celebração autêntica da diversidade portuguesa.
Destacámos a voluptuosidade generosa dos Ovos Rotos, Presunto, Espargos e Cogumelos Silvestres; a intensidade atlântica perfumada do Camarão Selvagem ao Alho; a brisa marítima do Arroz de Robalo e Marisco; e a nobreza suculenta do Costeletão de Novilho Maturado. Nas sobremesas, a profundidade indulgente do Petit Gatêaux de Caramelo e a leveza reconfortante do Strudel de Maçã com Molho Inglês.
Com 85 lugares disponíveis, o espaço conjuga a nobreza da hospitalidade nacional com a simplicidade elegante de uma cozinha que não precisa de artifícios para emocionar.
Cada refeição é um reencontro com o essencial: sabor, memória e partilha. Chamo ainda a atenção para a carta de vinhos, variada e cheia de qualidade. Experimentem os vinhos da Quinta da Vacaria Reserva, quer o branco, quer o tinto, que não se vão arrepender.
Nos interstícios silenciosos do antigo convento, dois bares, distintos na localização, mas unidos no espírito, oferecem pausas com alma e requinte. O Abadessa Concept Bar, situado nos claustros do mosteiro, é mais do que um bar: é um espaço onde a elegância clássica encontra o design contemporâneo, criando uma atmosfera que tanto acolhe como inspira.
Cada detalhe, do mobiliário à iluminação, foi pensado para proporcionar uma experiência sensorial plena, seja num fim de tarde descontraído ou numa reunião que pede sofisticação. Os cocktails aqui são verdadeiras composições aromáticas, pequenas sinfonias líquidas que despertam o palato e a conversa.
Já junto à piscina infinita, o Arcos Bar surge como um oásis sazonal onde o tempo abranda e os sentidos se expandem. Com uma paleta de tons neutros que dialoga com a paisagem, este refúgio ao ar livre convida a momentos de pura contemplação, acompanhados por snacks leves e cocktails preparados com o mesmo cuidado que se dedica à arte de bem receber. Um lugar onde o sol, a vista e o sabor se encontram numa harmonia perfeita.
No coração do antigo convento, onde outrora as Clarissas cultivavam o silêncio como forma de elevação, o Aqueduto Wellness & Spa by Sisley Paris nasce como uma extensão contemporânea desse legado de cuidado e contemplação. Inspirado na sabedoria ancestral e nas práticas de introspecção das religiosas, este espaço convida a um retiro sensorial onde corpo, mente e espírito se alinham num mesmo propósito: o bem-estar profundo.
A piscina interior espelha tranquilidade e convida à imersão num tempo sem pressa. A sauna, o jacuzzi e o banho turco funcionam como portais discretos para a serenidade, abrindo caminho para um estado de leveza que desarma as tensões acumuladas. Cada recanto do spa foi desenhado para celebrar o silêncio, não como ausência, mas como plenitude.
Os tratamentos exclusivos, como os rituais Vichy, onde a água quente cai em chuva suave sobre o corpo, e a cromoterapia, que utiliza a vibração das cores para restaurar o equilíbrio interior, são mais do que cuidados estéticos: são experiências de regeneração íntima. Aqui, cada gesto tem propósito, cada aroma conta uma história, cada toque é uma promessa de reencontro consigo mesmo.
Com acesso directo a um jardim encantado, onde a natureza parece sussurrar antigas orações, o spa transforma-se assim num santuário de harmonia. Tudo neste refúgio foi pensado para que a modernidade não rompesse com o passado, mas o escutasse, e o renovasse. É o luxo do essencial, da pausa merecida, da beleza que vem de dentro.
E como nos bons livros, onde muitas vezes a última página guarda a revelação mais luminosa, também aqui, entre pedras antigas e gestos renovados, uma das experiências mais inesquecíveis ficou para o fim: Um Restaurante Oculto, discreto, quase secreto, onde o sabor encontra a sua plenitude em silêncio e sob uma luz quase mística.
Há experiências que dispensam apresentações e se instalam directamente no território da memória. O menu de degustação Imersão do restaurante Oculto, liderado pelos chefs Vítor Matos e Hugo Rocha, é uma dessas raras ocasiões em que a sofisticação não afasta, aproxima. Cada prato é uma composição que cruza técnica, produto e emoção num equilíbrio que parece inalcançável até ser provado.
A viagem começa com a Sapateira, acompanhada de ovas de trufa e plâncton, uma combinação inesperada que introduz desde logo o tema principal: o oceano como origem, como matéria e como metáfora.
O sabor é puro, salino, com textura cremosa e frescura vegetal. O Bacalhau, com gema de ovo e trufa negra, prossegue esse caminho: a tradição portuguesa filtrada por uma lente precisa e luxuosa, onde a rusticidade do ingrediente encontra a delicadeza do gesto.
Segue-se um momento particularmente ousado: o Chawanmushi com ouriço-do-mar e vinho da Madeira, um prato que cruza Japão e Atlântico com fluidez, mostrando o domínio do chef Hugo Rocha sobre linguagens distantes. É um custard salgado, envolvente, iodado, onde o doce seco do Madeira traz uma nota oxidada e irreverente.
A Cavala surge em escabeche leve, refrescada por citrinos e pontuada por caviar Baeri: crocante, ácido, profundo, sem nunca perder a leveza. E a Gamba vermelha, um dos pratos mais equilibrados da noite, é servida com ajo blanco, mirim e levístico, num jogo que contrapõe a doçura untuosa da gamba à gordura subtil do creme e à frescura vegetal. Foi o meu momento favorito.
O momento mais inesperado chega com a Moqueca de lagostim. Um prato que respeita a origem brasileira, mas afina a textura e a densidade com elegância europeia. A cenoura surge não como coadjuvante, mas como voz complementar, elevando o prato com o seu tom doce e terroso.
Depois, a Lula, servida com arroz bomba, alho negro e manteiga de ovelha, oferece um dos momentos mais indulgentes do menu: cremoso, profundo, com um jogo perfeito entre gordura, umami e estrutura. Depois, entra em cena a Pescada, com pil-pil, espigos e broa de milho, um prato de alma minhota que surpreende pela precisão da técnica e pela pureza do sabor.
A transição para os sabores de terra faz-se com o Robalo selvagem, acompanhado de cantarelos, topinambo e caviar Oscietra. Um prato de entre o Verão e o Outono, leve, aromático, onde a terra e o mar dialogam sem se anularem.
As sobremesas surgem como epílogo poético: o Requeijão com mel, abóbora e flores evoca memórias de infância, mas com apresentação etérea. Já o Ananás dos Açores, com coco, especiarias e coentros, fecha a refeição com um sopro tropical e aromático, limpo e revigorante.
O serviço de vinhos, com mais de 500 referências na garrafeira do restaurante, acompanha com sensibilidade e discrição, evidenciando a harmonia entre pratos e copo, sem eclipsar o protagonismo do menu.
No Oculto, a alta gastronomia assume uma forma quase espiritual: não para impressionar, mas para comover. A ideia de fine dining aqui não é ostentação, mas celebração. Celebração do produto, da origem, do tempo e da arte de cozinhar com verdade. Um jantar que é, acima de tudo, uma experiência de escuta: do mar, da terra, da tradição, do futuro.
Cada detalhe, da luz rarefeita à ausência de janelas, das texturas da pedra à cadência pelos diferentes espaços, da introspecção do menu ao silêncio que envolve, parece existir não por acaso, mas por desenho. por muitas outras coisas, mas sobretudo por isto, na minha opinião, este é um dos espaços mais bem concebidos pelo chef Vitor Matos.
Talvez nenhum outro restaurante em Portugal traduza tão bem esta verdade essencial: que o todo, quando guiado por uma visão coerente e sensível, pode ser infinitamente maior do que a soma das partes.
No fundo, hospedar-se no The Lince Santa Clara é entrar num diálogo entre épocas. É perceber que o conforto não é um luxo moderno, mas uma herança bem cuidada. Que o silêncio pode ser hospitalidade. Que há lugares onde a beleza não se vê apenas: escuta-se. E que há hotéis que, mais do que alojamento, são uma forma de habitar o tempo.
Uma forma de viver a unidade na variedade, como queria Eco, onde cada pedra, cada luz, cada sabor e cada gesto participam da mesma liturgia silenciosa: aquela em que passado e futuro se curvam, por instantes, à harmonia graciosa do presente, quase como as notas sussurradas de um piano a ecoar suavemente num bar sereno, onde até o tempo pousa para ouvir.