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No meu Palato

No meu Palato

A Companhia - Museu do Douro | A 100 passos do desassossego

"«Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui? - perguntou a Alice». «Isso depende muito de para onde queres ir» - respondeu o gato. «Preocupa-me pouco aonde ir» - disse Alice. «Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas» - replicou o gato." Lewis Carroll

A Companhia - Museu do DouroO Livro do Desassossego é uma história, quase autobiográfica, que nos fala da sombria grandeza dos méritos que ninguém (re)conhece, servindo de inspiração consoladora para sonhos aparentemente modestos. Nesse conjunto de textos (em que não se sabe muito bem a ordem pela qual ler), Fernando Pessoa através do guarda-livros de um escritório da baixa de Lisboa, Bernardo Soares,  regista impressões intimistas que não espera ver publicadas. 

A Companhia - Museu do Douro"Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar", diz ele a certa altura, máxima essa que lhe parece dar uma certa esperança melancólica para encarar a sua vida. Pena é que, ao que tudo indica, essa esperança pareça ser apenas literária. Qualquer pessoa que já tentou escrever algo ou  iniciou um projecto novo e importante, sabe que a esperança em si, por vezes,  pode ser paralisante. 

A Companhia - Museu do DouroA maneira ideal de descrever esse estado de "ansiedade" criativa poderia assumir uma forma avulta, distante mas observadora, que inibe a proactividade inspirada através do medo da não realização.  Fernando Pessoa oferece-nos uma abordagem totalmente polémica para a encarar: aceitar que os sonhos não precisam ser convertidos em conseguimentos, o que não significa que devamos desistir deles.

A Companhia - Museu do DouroSoares é uma personagem literária, pensada como tal e com o objectivo de dar prazer a quem a lê, com um conjunto detalhado de crenças, geralmente contraditórias. Depois de se declarar um sonhador, ele diz que “despreza” os sonhadores. Depois de se considerar isento de vaidade e orgulho, toma o seu próprio trabalho como um dos mais interessantes do país. 

A Companhia - Museu do DouroNo entanto, a maior ironia de todas é a de o próprio Soares ter a maior ambição (literária) que alguém pode desejar: “sentir tudo em todos os sentidos”. Bernardo Soares, contudo,  é apenas uma máscara que Fernando Pessoa usa para fazer confissões pessoais, como num diário por interposta Pessoa, que oscila entre a inquietação, o tédio, a angústia e uma grande lucidez e capacidade analítica. 

A Companhia - Museu do DouroÉ por todos estes motivos que Bernardo Soares é considerado "apenas" um semi-heterónimo. Ninguém o descreve melhor que o próprio Pessoa:  "não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade." Na poesia de Fernando Pessoa, como na relação esquizofrénica de Pessoa com Soares, é constante o conflito entre o pensar, o sentir e o agir, que em boa parte revela a dificuldade em conciliar o que se idealiza com o que se consegue realizar.

A Companhia - Museu do DouroConflito esse que é resolvido num outro livro de Pessoa, na Mensagem, mais concretamente nos 7º e 8º versos do poema Mar Português: "Valeu a pena? Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena". Por outra palavras, tudo vale a pena se o Homem tiver a coragem e a força necessária para seguir as suas convicções, perseguir sonhos e trilhar o seu próprio caminho. 

A Companhia - Museu do DouroSe não tivermos muito claro que meta queremos alcançar, a nossa maneira de encarar a vida vai ser pouco ambiciosa e na maior parte das vezes vai decorrer ao ritmo do que a maré ditar.  A partir do momento em que definimos um destino, podemos, persistentemente, procurar caminhos para lá chegar, pensando em algumas paragens, pontos de passagem e até planear alguns desvios. 

A Companhia - Museu do DouroÉ aqui, precisamente aqui,  que a nossa mente se foca na busca de soluções para ultrapassar as barreiras encontradas e em que a esperança deixa de ser a castradora do Livro do desassossego para passar a ser a proactiva do Mar Português.  Encontrei essa esperança, que se cultiva diariamente, no restaurante A Companhia - Museu do Douro. Um museu vivo, no qual também podemos treinar o nosso nariz com os diferentes aromas do vinho, fazer diversas provas que enriquecem o nosso palato e visitar um dos melhores e mais recentes restaurantes da região.

  A Companhia - Museu do DouroO Chefe Fábio Paiva orquestrou um menu com alma duriense e corpo de autor irreverente. Depois de umas boas vindas em forma de Trufa, queijo Cheddar, amêndoa e doce de pimento, intensa, rica, fresca e com muitas camadas de texturas seguiu-se um Ovo mal cozido com terra de azeitona, bolacha de cogumelos marron e folha de shiso, surpreendentemente fresco, untuoso q.b., com a azeitona a acrescentar uma inusitada acidez e os cogumelos a contribuir com uma ligeira terrosidade e um toque de mar. 

A Companhia - Museu do DouroSeguiu-se um dos cartões de visita desta casa,  Gambas ao molho de vinho do Porto com rebentos de aipo, amores-perfeitos e tosta ao alho. Provoca uma sensação picante-salgada, com uma espécie adstringência achocolatada e uma voluptuosidade salina.  Muito rico, muito bem executado e assente em contrastes que se complementam.  

A Companhia - Museu do DouroO Bacalhau com crosta de amêndoa e castanha, rebentos de coentros, beterraba, courgette, cenoura, milho e alho francês, tinha o peixe cozinhado no ponto, carregado de suculência, maresia, ligeiro picante e sabor. Com as lascas a separarem-se uma das outras, promovia uma excelente combinação com a adiposidade da crosta e com a crocância dos vegetais.   

A Companhia - Museu do DouroApós um corta-sabores super refrescante (sumo de lima, rosé D. Graça, hortelã e morango desidratado) seguiu-se o Medalhão de vitela com queijo da Serra, puré de batata Vitelotte, espargos e redução de vinho do Porto.  A doçura e acidez da redução,  os aromas fartos a frutos secos do puré (impecável e a estrela do prato!!!) e a intensidade do queijo foram excelentes anfitriões para a consistência firme, suculência e incrível sabor da vitela.  

A Companhia - Museu do DouroAs sobremesas como o Pastel de Leite Creme e Gelado de Canela (com uma harmonia de sabores abastados subtilmente quebrada pelo contraste de temperaturas) e a Mousse de Chocolate Branco e Morango, tapioca e pérolas de limão (a minha preferida com uma textura elegantemente cremosa, sabores equilibrados, texturas suplementares e alguma dose de surpresa com a saborosíssima calda de manga aprisionada no interior) mostraram que a arte e engenho do Fábio crescem, passo a passo,  com um objectivo bem definido. 

15.JPGMas mais importante que isso é perceber que foi construído um menu que no final faz sentido, deixando sempre evidentes pinceladas de cozinha de autor em todos os pratos. Os Chefes que aprecio conseguem criar essa marca identitária, presente em tudo o que fazem, seja num menu executivo ou num menu de degustação como este.

A Companhia - Museu do Douro O constante e camaleónico jogo de temperaturas, aromas, sabores e texturas, por vezes assente na comunhão e noutras no contraste, que agrada tanto ao palato como ao intelecto, promovido neste almoço, fez com que o Fábio já pertença a esse restrito grupo, pois está longe, a 100 passos, da esperança (que apesar de promissora) ainda limitava (a que encontrei no Longroiva) e cada vez mais perto, aí a uns 20 passos (;)) do objectivo que sei que ele traçou para si mesmo, que merece e que não o faz parar. 

A Companhia - Museu do DouroNo poema "Qualquer caminho leva a toda a parte" Pessoa refere que "Ir é ser. Não parar é ter razão". Depende apenas do Fábio fazer com que ambos tenhamos razão. ;) Que nunca te desvies desse caminho, sempre com grande lucidez, inovação e incessante capacidade analítica...