A "nova" Quinta da Rede | Quando se faz uma panela
"Ambas as coisas baseiam-se na novidade, mas, ao passo que a originalidade é a novidade no campo mental, a singularidade é a novidade no campo emotivo. Um grande poeta pode não ser, psicologicamente, um «caso» curioso; pôde sê-lo um poeta de menor relevo. O primeiro é forçosamente mais original; o segundo evidentemente mais singular." Fernando Pessoa
Será que a crise de 2008; a prisão em 2013 do mais famoso falsificador de vinhos do mundo - o indonésio Rudy Kurniawan; e a reforma de Robert Parker em 2016 têm alguma coisa com o "reposicionamento" da marca Quinta da Rede no Douro? Na minha cabeça sim!!! ;) Estamos no inicio da Primavera de 2008: a 14 de Março o Bear Stearns, o quinto maior banco de investimento dos EUA, teve que recorrer à Reserva Federal e ao JP Morgan para conseguir fundos de emergência que evitassem a sua falência; a 25 de Abril um grupo de coleccionadores de vinho reúne-se no restaurante Cru de Nova Iorque para um leilão organizado por Rudy Kurniawan.
Estes dois acontecimentos dariam origem a autênticas hecatombes, quer no mundo financeiro, quer no mundo vínico. O primeiro levou ao aumento conjunto do crédito mal parado, dos juros e da inflação. O segundo fez com que Laurent Ponsot, proprietário do Domaine Ponsot, uma das mais importantes casas da Borgonha, aparecesse no restaurante Cru para interromper o leilão de garrafas Domaine Ponsot, alegando, entre outras coisas, que uma garrafa de Clos de la Roche 1929 era falsa, pois a sua casa apenas começou a produzir essa referência em 1934!!!
Em poucos meses, a economia mundial estava de cocaras devido à crise financeira e a maior parte dos grandes coleccionadores perceberam/aceitaram que tinham sido burlados. A falta de liquidez e a percepção (em alguns casos dolorosa) que nem sempre o vinho mais caro é o melhor vinho, originou um admirável mundo novo nos vinhos, não determinado pelo status e muito mais democrático, heterogéneo e diversificado do que o anterior.
Uns anos mais tarde, em 2016, Robert Parker reforma-se... O mais famoso critico de vinhos que, quase sempre, criava uma proporcionalidade directa entre extracção/grau alcoólico/madeira e boas classificações, abria assim caminho para a "desparkerização" dos vinhos.
Deste modo, em 2016 (e com as taxas de incumprimento das hipotecas a rondar os 10% na Europa-Estados Unidos da América), os grandes vinhos da Europa (Ponsot, Domaine de la Romanée Conti, Petrus e Comte de Vogüe) assim como alguns portugueses (Barca-Velha, Pera-Manca, Portos e Madeiras) encontram como "canal escoador" a Ásia, principalmente a China: de novo com o status como foco dinamizador. A solução para aqueles que procuravam vinho de qualidade (para o beber e não para o coleccionar) passou a ser a descoberta de novos vinhos e novas regiões.
Tudo isto provocou mudanças dogmáticas, globais e dramáticas. Os estilos de vinho em quase todas as regiões mundiais evoluíram rapidamente, e um pouco por todo o mundo essa mudança levou a vinhos mais leves, mais frescos e mais vinculados ao terroir e não tanto à madeira. É também por esta altura que o status quo dos grandes vinhos europeus é posto em causa. Estaremos a pagar o vinho ou o rótulo?
Toda esta sequência de eventos, que algures ali pelo meio chegou a parecer catalítica, caótica e irracional, cria uma janela de oportunidade: a valorização de vinhos elegantes e que entreguem ao nosso palato singularidades do sitio onde nasceram. Os novos enófilos não procuravam tanto a originalidade pois essa poderia ser uma construção artificial no campo mental por parte da equipa de enologia, mas antes a singularidade que acrescentava algo no campo emotivo. E tudo isto, tem muito a ver com a "nova" Quinta da Rede.
A Quinta da Rede é propriedade de José Alves desde 1995. Tem 19 hectares e vinhas a uma altitude entre os 100 e os 500 metros. Integrou a região do Douro mesmo antes da demarcação pombalina. O registo histórico mais antigo referente a esta propriedade na margem direita do rio Douro, entre Mesão Frio e a Régua, data de 1484.
Procura agora devolver-nos o primeiro Douro, o do Baixo Corgo, e resgatar o Marão, a serra esquecida do Douro vinhateiro Património da Humanidade. A estreia do novo ciclo deste projecto de Mesão Frio faz-se de vinhos de parcela que contam com a assinatura de Paulo Nunes.
É a gama premium dos vinhos Quinta da Rede que tem por missão resgatar esse Douro mais fresco. Fazem parte dessa equipa de "elegantificação" o rosé, o branco da Vinha do Pinheiro, o tinto da Vinha da Seara, o monocasta Sousão e o Porto Vintage 2018. Estes vinhos são produzidos na adega própria da Quinta, bem equipada com lagares de inox robotizados, sistema de frio e outros apetrechos tecnológicos de apoio à enologia, que conta ainda com Jorge Cardoso, enólogo permanente do projecto.
O Quinta da Rede Rosé 2021 (17.90 €, 89 pts.) é constituído por Touriga Nacional (60%), Touriga Franca (15%) e Tinta Amarela (25%), e resulta de uma vinificação com cacho inteiro e prensagem pneumática muito suave, aproveitando-se apenas o mosto de gota. Metade fermentou em inox a 15ºC, a outra metade em barricas novas de carvalho francês. Em ambos os casos, houve agitação das borras finas no pós fermentação. O resultado é um vinho de cor rosa-salmão com notas de amoras, morangos, pedra de isqueiro e fumo. Na boca é fresco (quase a remeter-nos para os verdes), untuoso, crocante e muito equilibrado.
Já o Quinta da Rede Vinha do Pinheiro 2019 (40.00 €, 93 pts.) é um branco incrível. Surge após uma vinificação com selecção manual das uvas à entrada da adega, desengace total, maceração pelicular a frio de 8 horas, prensagem pneumática suave, seguida de fermentação em barricas de carvalho francês com tosta ligeira a temperatura controlada de 15ºC. O estágio ocorre por 12 meses "sur lies" em barricas novas de carvalho francês de 500L. Amarelo citrino esverdeado, emana damasco, compota de laranja, acácia-lima, fumo, pedra partida e alguma tosta. Na boca pede incessantemente por comida: é fresco, avolumado, largo, longo e muito equilibrado. Precisa de uns bons anos em garrafa para se mostrar em todo o seu esplendor.
Por sua vez o Quinta da Rede Vinha da Seara Tinto 2019 (40.00 €, 92 pts.) tem origem numa vinha tradicional do Douro situada na encosta do Marão, a 450 metros de altitude, e é um lote com grande diversidade de castas regionais: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Touriga Franca, Tinta Barroca, Mourisco da Semente, Alicante Bouschet, Touriga Fêmea, Tinto Cão, Tinta Amarela, e Preto Martinho, entre outras. A fermentação ocorreu em lagar tradicional robotizado a 26ºC durante 10 dias, seguido de 14 meses de estágio em barricas novas de carvalho francês de 300 litros. De cor encarnada-rubi, tem um nariz muito bonito com ameixa, fumo, pedra partida, sous bois, mato e esteva. Na boca é muito elegante, exibindo taninos por camadas, verticalidade, secura e complexidade.
Ainda nos tintos, o Quinta da Rede Sousão (20.00 €, 90 pts.) é oriundo de vinha localizada na encosta da serra do Marão, a 400 metros de altitude, virada a norte. Fermentou em lagar mecânico a 26ºC durante 10 dias, seguindo-se estágio de 16 meses em barricas novas de carvalho francês de 500 litros. De cor rubi opaca carregada mostra no nariz muito sous bois, ameixa, mirtilos e cerejas. Na boca seduz pela sua frescura viva, austeridade, taninos suaves mas estruturados, intensidade e profundidade.
Por último, o Quinta da Rede Porto Vintage 2018 (60.00 €, 92 pts.) é dedicado a Bernardo e Benedita, a mais recente geração da família de José Alves, e é uma celebração destes laços inquebráveis que unem as terras e as pessoas, através de uma paixão que se transmite de pais para filhos. Rubi denso no traje, este belo Porto está cheio de frutos silvestres, lagar, lavanda e esteva. Na boca é super fresco, moderadamente doce, delicado e com taninos (quase) indomáveis.
No Douro costuma-se dizer que “Quando se faz uma panela faz-se (logo) um testo para ela.” O testo para este terroir é claramente esta elegância, esta frescura, esta acidez, esta singularidade que nos deixa o palato salivante. Tudo o resto é maquilhagem desnecessária e desvirtuadora. Em retrospectiva, aqueles que de nós estavam insatisfeitos com a sobrematuração dos vinhos que os tornavam demasiado maçudos, acabamos por ser beneficiados por uma cadeia de eventos que culminou no lançamento de vinhos como aqueles que vos falei hoje. Que tenhamos aprendido com os erros. Estamos num caminho (bastante) melhor, que não voltemos a substituir a caneta BIC pela Parker... ;)