A Ver Tavira | Abre a quem não bater à tua porta
“Nós somos casas muito grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas.” António Lobo Antunes
Em "As Portas da Percepção" (1954), Aldous Huxley convida-nos a explorar as profundezas da consciência humana e os mistérios ocultos do universo que normalmente permanecem invisíveis aos nossos olhos. Inspirado por uma experiência com mescalina, um psicodélico que altera a percepção, Huxley descreve um mundo que transborda de cores, texturas e padrões antes despercebidos.
Este escritor britânico argumenta que a mente humana, por necessidade de sobrevivência e para garantir a ordem no quotidiano, funciona como uma espécie de “válvula redutora”, limitando o fluxo de estímulos e mantendo apenas o essencial para que possamos funcionar de forma prática.
Segundo ele, o que consideramos “realidade” é apenas uma versão empobrecida do que na verdade nos cerca, filtrada e simplificada para que possamos lidar com ela. No entanto, ao abrir as “portas da percepção”, como Huxley refere poeticamente, podemos experimentar uma expansão dessa realidade limitada.
Nessa nova dimensão de experiência, as coisas comuns tornam-se extraordinárias; uma simples flor é uma explosão de complexidade e beleza, cada detalhe da natureza revela uma vitalidade que transcende a função e a aparência. Para Huxley, essa experiência não é apenas visual, mas profundamente espiritual. Ele acredita que, ao ver o mundo sem os filtros condicionados pelo ego e pela sociedade, podemos vislumbrar uma realidade mais pura e essencial, onde tudo parece interligado.
A metáfora das “portas” é, assim, um chamamento para atravessar fronteiras, para deixar de lado o familiar e confortável, em busca de algo mais vasto e, quem sabe, mais verdadeiro. Ele sugere que todos nós, presos às limitações da percepção ordinária, vivemos como prisioneiros dentro de uma sala com paredes fechadas.
Contudo, além dessas paredes, existe um vasto mundo à espera para ser descoberto. Para Huxley, abrir essas portas não é apenas uma expansão dos sentidos, mas uma entrada para o sublime, onde cada detalhe, cada momento, carrega o potencial para transformar nossa visão da vida e do mundo.
Ao mergulharmos numa experiência assim, ele sugere que cruzamos uma fronteira invisível para um estado de revelação, onde o que antes era banal se torna iluminado por um novo significado. Tal jornada, além de desafiar os nossos conceitos de “realidade” e “normalidade”, é também uma oportunidade de explorar o desconhecido, por vezes em nós mesmos.
Há uma cidade portuguesa onde essa ligação quase umbilical com a metáforas das portas é bastante significativa: Tavira. Por lá, as portas e janelas não são apenas aberturas funcionais; elas são quase personagens, feitas para comunicar, proteger e ventilar, para filtrar o calor e moldar a luz, ou mesmo para permitir que brados ecoem pelas ruas. Inspirando-se nesta riqueza cultural das portas tavirenses, o restaurante A Ver Tavira convida-nos a atravessar um portal culinário, onde cada prato é uma passagem para novas descobertas. Assim como as portas das casas locais, que protegem e embelezam, criando conexões entre o interior e o exterior, a cozinha do Chef Luís Brito abre caminho para uma fusão entre tradição e inovação, envolvendo o paladar numa experiência que surpreende e conforta.
No A Ver Tavira, essa ligação com a cidade e suas tradições ganha vida na selecção de ingredientes que valorizam o que há de mais autêntico na região, e nas janelas amplas que moldam a luz enquanto revelam vistas deslumbrantes do rio Gilão. Assim como as casas que pontuam a cidade com suas portas de madeira e batentes elegantes, o restaurante destaca-se pela maneira única de criar um diálogo entre o ambiente local e as criações modernas servidas no prato.
Sob o comando do Chef Luís Brito, cada menu degustação é como abrir uma nova porta para os sabores algarvios reinterpretados com criatividade. As combinações improváveis, que equilibram vegetais frescos e frutos do mar regionais, remetem à diversidade e funcionalidade dos batentes de Tavira, cujos toques distintos identificavam cada lar.
Da mesma forma, cada prato do A Ver Tavira parece bater à porta do paladar com uma proposta única — seja o Carabineiro do Algarve, o Choco da ria formosa, o Porco preto do Zambujal, ou as raízes e ervas locais que evocam o espírito da cidade. Falemos então de gastronomia...
O menu "A Viagem do Sabor" iniciou com uma “Homenagem à ilha da Madeira”, Gaiado | milho | banana. O gaiado trazia a força salgada do Atlântico, evocando as ondas e a tradição pesqueira da ilha, enquanto o milho lembrava as montanhas e os campos cultivados com dedicação. A banana, doce e tropical, equilibrava o prato, dando-lhe um toque exótico que reflectia o calor e a exuberância da Madeira.
Seguiu-se “Saltieun”, Sapateira | ovas de truta | especiarias, uma explosão de frescura marinha e exotismo. A sapateira revelava uma riqueza de sabores oceânicos, delicada e cremosa, enquanto as ovas de truta acrescentam pequenas explosões de sabor salino. As especiarias, com o seu perfume envolvente, atravessavam o prato como uma brisa quente, elevando e transformando cada elemento em algo inesperado e vibrante.
O “Mar Profundo”, Carabineiro do Algarve | limão caviar | cardamomo, é uma viagem aos sabores intensos e misteriosos do oceano. O carabineiro do Algarve trazia uma profundidade rica e suculenta, com uma brisa adocicada que nos remetia para o calor das águas do sul. O limão caviar, com as suas pequenas esferas ácidas, estalavam no palato, refrescando e iluminando cada mordida com uma acidez vibrante que contrastava e intensificava o marisco. O toque subtil do cardamomo acrescentava uma camada aromática, quase etérea, como um eco distante que deixava no ar um exotismo sedutor, quase insinuante. O prato é uma ode ao mar, denso e refrescante, sofisticado e visceral.
“Entre o mar e a terra”, Peixe de linha | caldo de urtigas | chouriço, encontramos a delicadeza do peixe de linha com notas profundas e terrosas. O peixe, fresco e suave, é elevado pelo caldo de urtigas, que traz um verde amargo e mineral, evocando a terra fértil e selvagem. O chouriço, com o seu toque defumado e picante, insinua-se no prato, aquecendo e completando o perfil marítimo com uma robustez que vem da terra. Cada elemento e cada textura destaca o outro, criando uma harmonia inesperada.
Por sua vez, o “Choco da ria formosa”, Choco | arroz | limão verde, inspirado no ataque deste molusco, é uma celebração da simplicidade dos sabores locais, intensos e refrescantes. O choco, tenro, suculento e com um sabor marinho suave, transportava a frescura da Ria Formosa, enquanto o arroz, cozido no ponto certo, absorvia cada essência do mar, conferindo uma textura exótica, cremosa e envolvente. O limão verde acrescentava uma acidez vibrante e cítrica, que cortava a riqueza do prato com um toque revigorante, realçando a frescura do choco e deixando uma sensação leve e refrescante no final. Tal como no ataque do choco, a parte importante está escondida. ;)
“Feito no zambujal”, Presa de porco preto |mexilhão | jus, é uma fusão terrosa e marítima, onde a presa de porco preto, suculenta e robusta, nos brindava com o sabor autêntico do campo, com o toque de doçura e intensidade característico deste corte. O mexilhão, com a sua salinidade delicada, adicionava um contraste surpreendente, lembrando o mar próximo e elevando a carne com uma nota fresca e inesperada. O jus, em forma de elo aglutinador, concentrado e rico, unia os elementos, impregnando cada componente com profundidade e um toque de rusticidade, como uma celebração dos sabores profundos e genuínos da paisagem do Zambujal.
Para terminar, como não poderia deixar de ser, uma porta e 5 dedos que significavam felicidade, sorte e fortuna. “Hamsa”, Mandarina | mirra | bela luísa, é uma sinfonia de aromas delicados e exóticos, onde a mandarina, com sua doçura cítrica e refrescante, trazia uma nota vibrante e ensolarada, quase como o toque inicial de uma brisa mediterrânica. A mirra, misteriosa e resinosamente aromática, acrescentava uma profundidade terrosa e levemente amarga, evocando perfumes antigos e tradições ancestrais. A bela-luísa, com o seu toque herbáceo e cítrico, envolvia o prato com uma suavidade floral e refrescante, ligando cada elemento numa harmonia subtil e envolvente. É um prato que transporta, evocando a frescura e a espiritualidade de terras distantes.
Foi assim que, neste cenário elegante e histórico, rodeado pelas igrejas e pelo antigo castelo árabe, Cláudia Abrantes e Luís Brito nos acolheram no A Ver Tavira com a mesma hospitalidade que enche de vida as ruas desta cidade. Cuidam do restaurante com uma paixão que transparece em cada detalhe, transformando a experiência em algo tão único quanto a própria Tavira.
Aqui, como nas portas discretas das casas tavirenses, não há pressa, nem formalidade, apenas um convite implícito para atravessar um limiar de sabores e sentidos. Como sugere o poema de Pessoa, a quem "roubei" o título desta publicação, o convite é silencioso, uma espécie de intuição para aqueles que aceitam o prazer da descoberta em lume brando, sem pressa e sem ostentação.
No A Ver Tavira, quem realmente "bate à porta" são os sentidos, ávidos para encontrar uma nova linguagem. E, para quem aceita esse convite, cada prato torna-se uma passagem, uma janela onde Tavira se apresenta em nuances que esperam ser reveladas, como um segredo que só se entrega a quem arrisca a deixar o "um quarto ou dois" da sua casa grande e comprida, sem medo ou cegueira, à espera de ser tocado pelo inesperado.
Por lá, a tradição e a inovação entrelaçam-se como um murmúrio antigo reimaginado, levando-nos a revisitar memórias e descobrir novos sabores. Cada garfada é uma surpresa, um vislumbre da Tavira profunda e autêntica, onde cada ingrediente conta uma história. É uma Tavira que se veste de gala, que se maquilha com toques de subtileza para parecer ainda mais bela, sem perder o seu carácter genuíno. A mesa torna-se um palco, e a cidade uma musa, pronta a revelar-se em camadas, como um pergaminho antigo desdobrado. Obrigado por nos terem aberto a vossa porta, mesmo sem termos batido ;)