Adegga WineMarket Porto 2019 | Um amor tomado aos tragos
"Primeiro a serra semeada terra a terra, nas vertentes da promessa. Depois o verde que se ganha ou que se perde, quando a chuva cai depressa. E nasce o fruto quantas vezes diminuto, como as uvas da alegria. E na vindima vão as cestas até cima com o pão de cada dia. Suor do rosto pra pisar e ver o mosto, nos lagares do bom caminho. Assim cuidado faz-se o sonho e fermentado generoso como o vinho... É o conforto de um amor tomado aos tragos que trazemos por vontade em Portugal. Se nós soubermos ser amigos desta vez não há Champanhe que nos ganhe, nem ninguém que nos apanhe, porque o vinho é português!!!" Carlos Paião
Esta história começa no nobre ano de 1983, ano em que que Stanislav Yevgrafovich Petrov salvou o mundo de uma guerra nuclear (um dia conto-vos esta história, pois merece ser contada) e da chuva vermelha em Londres. Neste ano a Swatch cria os seus primeiros relógios e George Lucas lança o episódio IV da Guerra das Estrelas.
Em Portugal, nessa altura, dignidade rimava com austeridade, pois para não variar, estávamos numa crise económica enquanto que Saramago marchava pela paz a caminho do Nobel. Na música, este foi o ano em que Michael Jackson apresentou o Moonwalk ao som de Billie Jean e que Amy Winehouse nasceu, curiosamente e exactamente no mesmo dia que eu - 14 de Setembro.
É ainda neste ano que Carlos Paião e Cândida Branca Flor interpretam juntos Vinho do Porto no Festival da Canção (era a canção nº5). Perderam o festival mas venceram o tempo ao criarem a canção mais popular e propagandista do vinho lusitano, célebre pelo mundo fora. É por esse motivo que Vinho do Porto me pareceu uma excelente banda sonora para a super atrasada publicação relativa ao Adegga WineMarket Porto 2019.
Para mim, esta música está para a história do vinho do Porto, como os Lusíadas estão para a história do país, pois celebra em rima e metaforicamente as suas virtudes. Começa com a chuva no inverno a castigar as videiras, depois com o nascimento das uvas da alegria e com a vindima dos sonhos fermentados, prossegue com o transporte nos rabelos da vida, para acabar na festa que é a sua prova. Por falar em prova e em festa, começamos o Adegga WineMarket Porto 2019 com o Santiago na Ânfora do Rocim Branco 2018 (89 pts.).
O pó de arroz (estou mesmo numa de Paião), a toranja, a lima, a flôr de laranjeira, o damasco, a cera, o picante e algum vegetal criam um bouquet bastante rico e complexo. Exibe alguma (e surpreeendente) salinidade, cremosidade e um acabamento longo e bastante mineral (pedra molhada). Este é um verde que sem dúvida se ganha. No entanto, o maior realce nos brancos vai para o Poças Branco da Ribeira 2017 (94 pts.)
As uvas da alegria deram-lhe uma frescura muito particular, a ligeira mineralidade e as notas nobres a citrinos, baunilha e especiarias tornam este vinho bastante complexo, subtil e equilibrado. O volume, espessura e acidez muito viva garantem-lhe uma óptima evolução em garrafa.
Nos tintos, destaque para a cereja preta, amoras maduras, ameixa preta, especiarias, chocolate, boa acidez, equilíbrio, complexidade, concentração, mineralidade e textura aveludada do Prats & Symington Chryseia 2016 (93 pts.) e para a ameixa, mirtilos, compota de cereja, cacau, hortelã, boa acidez e taninos super sedosos do Paulo Laureano Alicante Bouschet Tinto 2014 (90 pts.).
Tive ainda a oportunidade de rever o Niepoort Poeirinho, desta vez com o seu traje de 2012 (92 pts.) e respectivos morangos, amoras vermelhas, violetas, relva acabada de cortar, barro, azeitona e incrível acidez. Atribuo o prémio de melhor tinto ao Legado 2014 (94 pts.) porque me voltou a conquistar com os seus morangos, esteva, violetas, resina, pinheiro, caruma, subtil apimentado, boa mineralidade (xisto) e enorme frescura, equilíbrio e complexidade. Um autêntico sonho fermentado.
Antes de passar para os Portos, gostaria ainda de vos falar do Alves de Sousa Reserva Pessoal Tinto 2011 (92 pts.),devido à sua fruta preta em compota muito bonita, violetas, esteva, eucalipto, alcaçuz, aromas iodados e ligeira terrosidade. Um vinho que está no ponto ideal de consumo. Depois de um agradável arroz de marisco confeccionado pelo Gaveto, não mais saímos da sala Premium do Adegga.
Aproveito para dizer que este foi o único ponto menos bom do evento. Gostei dos 400 vinhos em prova (120 deles com pontuações iguais ou superiores a 90 pontos nas várias publicações nacionais e internacionais de referência), das várias provas temáticas, da harmonização com a arte e do novo espaço na Alfândega do Porto, no entanto, senti falta da privacidade, glamour e eficiência da antiga Sala Premium.
Felizmente (e outra coisa não seria de esperar), a qualidade dos vinhos desta sala manteve-se assombrosa, particularmente nos Portos. O Graham's Vintage The Stone Terraces 2017 (99 pts.) "mata" qualquer enófilo. Exibe desenvergonhadamente mirtilos, framboesas, sous-bois, flor de laranjeira, lima, lavanda, esteva, caruma, flores secas, tangerina, concentração, intensidade, estrutura e equilíbrio inacreditáveis.
Continuando nos Vintage 2017, o Quinta do Noval Vintage 2017 (98 pts.) seduziu-me com os seus aromas complexos, com notas de violetas e fruta intensa, aliados a uma indissociável pureza e frescura. Tem uma estrutura incrível e uma dicotomia perfeita entre a elevada concentração e extrema delicadeza. Final largo, longo e extremamente harmonioso. Noutro registo, o Kopke Very Old Dry White (98 pts.), e em resultado dos mais de 50 anos a envelhecer em cascos de madeira, emana damasco, avelãs, frutos secos, maracujá, pinho, secura e eleva densidade. O porte é delicado, intenso e bastante distinto.
Mantendo o foco nos Tawnys, a cor âmbar esverdeada do Barros 102 Very Old Tawny (97 pts.),que resulta de um lote de vinhos antigos das décadas de 1950, ’60, ’70, ’80 e ’90, disse logo ao que vinha: damasco, figos desidratados, telha de amêndoas, cravinho, noz-moscada, creme de avelãs, caixa de charuto e ligeiro fumo. A acidez, elegância, estrutura e complexidade são perfeitas. É outro que está no ponto de consumo ideal.
Para último o Niepoort Colheita 1983 (95 pts). Não foi o mais pontuado, não foi o mais procurado, nem sequer foi o mais caro. Mas tinha muita coisa lá dentro. Casca de tangerina confitada, damasco, passas, ameixas e café. Tem um final longo, doce, concentrado, elegante, complexo, longo e equilibrado.
Mas tinha lá mais qualquer coisa ... é de 1983. E é aqui que retomo a música de Carlos Paião, uma ode ao vinho e às pessoas do vinho. Uma canção de alegria e de celebração do vinho Português e de um amor tomado aos tragos, por duas jovens estrelas cujas vidas terminaram precocemente e em tragédia: Carlos Paião em 1988 num acidente de automóvel e Cândida Branca Flor com uma mistura fatal de medicamentos e ... vinho (:() em 2001.
Aliás o ano de 1983 e os músicos parecem não se darem muito bem, é nestas alturas que fico contente por não ter uma voz de rouxinol ;). No entanto, o que fica deste legado de Carlos Paião e Cândida Branca Flor é a materialização em palavras deste amor festivo tomado aos tragos. Que a vida nos continue a emprestar uns foguetes de ilusão e que possamos, um dia mais tarde, brindar todos desse lado (onde sinceramente espero que haja muito e bom vinho, senão começo já a pecar descaradamente!!!). Pois não há champanhe que nos ganhe, nem ninguém que nos apanhe, porque o vinho, esse mesmo vinho das memórias, das videiras da esperança e das uvas da alegria é português.
Parabéns, André Ribeirinho, mais uma vez, por esta festa tão bonita ;)