Alves de Sousa | Do outro lado do teu eu
"Aqui, vês, é preciso correr o mais depressa possível para conseguirmos ficar no mesmo sítio!!!" Lewis CarrollA pequena Alice está sentada numa cadeira na sua sala de estar, em frente a um espelho enquanto conversa com a sua gata Kitty, até que se apercebe do mundo alternativo que existe do outro lado do espelho. Como em todas as boas histórias, a menina decide explorar esse outro mundo desconhecido, encontrando um lugar fisicamente muito parecido com o real, mas muito diferente nos "acontecimentos". É nesse mundo encantado que descobre um relógio sorridente, peças de xadrez divertidas e um livro com o texto invertido e que apenas pode ser lido num espelho.
Depois de deixar a sua sala, passar para o outro lado do espelho e de um breve/atribulado passeio pelo jardim, algumas flores falantes encaminham a Alice para a Rainha Vermelha, que a informa que vai passar a fazer parte de um jogo de xadrez gigante. O objectivo deste jogo é fazer de Alice uma rainha. Para isso vai contar com a ajuda da rainha Vermelha que a instruí enquanto lhe explica a natureza retrógrada do mundo daquele lado do espelho.
É assim que o livro Alice do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll começa. Uma obra publicada em 1871 e que brinca com a noção de tempo, discute os diferentes eus e introduz questões muito contemporâneas como a luta pela igualdade (real) por parte das mulheres ou a problemática das fake news. O livro retoma ainda uma velha questão, introduzida em Alice no País das Maravilhas, o de quem nós somos e o que define o que somos?
Quando Alice encontra a Lagarta, uma das primeiras coisas que ela lhe faz é perguntar quem ela é (de uma forma bastante exigente e agressiva, devo acrescentar...). Se eu vos fizesse a mesma pergunta, provavelmente responderiam com os vossos nomes. Mas é isso o que vos define? Quem são vocês realmente? Como vos descreverias a outra pessoa? Essas não só questões fáceis de responder, uma vez que é importante darmo-nos a conhecer da melhor maneira possível, mas é também igualmente importante não nos limitarmos a rótulos e a ideias pré-definidas.
Alice, por ter passado por tantas coisas e por ter mudado física/mentalmente um sem número de vezes, desde que entrou no seu País das Maravilhas, não sabe como responder adequadamente à pergunta introspectiva da Lagarta. Tal como a Alice, também nós mudamos com o tempo. A pessoa que somos hoje não é a mesma que éramos ontem, e isso, ao contrário do que possa parecer, é algo realmente bom. Quando não mudamos, não crescemos. Uma das razões pelas quais algumas pessoas parecem não mudar é porque muitas vezes se limitam a uma definição do que deveriam ser (ou foram).
É por tudo isto, que a Alice aprendeu que devemos promover um eu diferente para cada contexto em que estejamos (não devemos dançar a Macarena enquanto dá-mos uma aula, nem ensinar Física quando estamos numa festa de aniversário animada). No entanto, esses diferentes eus devem confluir num conjunto de valores e atitudes que não mudam em função da circunstância. Caso contrário corremos o risco de por um lado sermos uma seca/monótonos e por outro não termos identidade. Isto também é particularmente importante quando falamos de vinhos.
Por um lado, não se pode ficar preso a "receitas de sucesso" que apesar de vencedoras podem tornar os vinhos demasiado homogéneos, por outro não se deve exagerar na heterogeneidade que pode levar à perda do "fio condutor identitário" que, na minha opinião, caracteriza um bom produtor/enólogo. Um bom exemplo desta capacidade de fazer diferente fazendo congruente são os vinhos com a chancela Alves de Sousa. Neles existe o respeito pela vinha velha mas também pela inovação com a optimização de vinha nova, consegue-se fama em vinhas especificas (Vinha do Lordelo e Abandonado) mas também em lote (Quinta da Gaivosa) e promove-se a excelência em parcelas abandonadas como a do .... Abandonado - Quinta da Gaivosa mas também em vinhas "adoptadas" - Quinta da Oliveirinha.
A presente publicação vai esmiuçar vinhos dessas duas quintas, começando pelo Branco da Gaivosa 2019 (10.90 €, 86 pts.) proveniente de uma vinha com mais de 20 anos. De cor amarela-citrina-palha exibe um nariz muito aromático com lima, damasco, maçã, acácia-lima, cera de abelha, fumo e um anis muito ligeiro. Na boca é muito fresco, ligeiramente untuoso, tem bom volume e uma mineralidade muito vincada (xisto molhado). Foi muito bem com uma Terrine de foie gras e pera bêbada.
Por sua vez, o Gaivosa Primeiros Anos 2017 (13.90 €, 88 pts.) é resultante da primeira produção da vinha nova, com 13 castas misturadas e mostra-se num rubi-purpura denso muito atraente. No nariz tem uma fruta bastante madura com amoras, framboesas, groselha e morangos. Tem também apontamentos mais discretos a especiarias, cedro e alcatrão que lhe ficam muito bem. Na boca é carnudo, redondo e equilibrado.
O rubi denso Quinta da Oliveirinha Grande Reserva 2017 (21.90 €, 93 pts.), proveniente de uma vinha velha com mais de 60 anos, foi uma bela surpresa. Fez-me, por momentos, recordar alguns grandes do Douro a um preço bem mais acessível. O nariz é muito complexo com amoras, ameixa preta, mirtilos, sous-bois, cedro, resina, caixa de tabaco, alcaçuz, café, gengibre e algumas notas arbustivas (os balsâmicos são super sedutores). No palato passeia-se com uma notável frescura e mostra uns taninos bem integrados, persistência, complexidade e harmonia (ainda que com algumas arestas intrigantes).
Pensava que seria o que combinaria melhor com a Perna de cabrito assada (daí a fotografia), mas, com o decorrer do tempo, o Primeiros Anos saiu-se (bastante) melhor. No entanto, o Quinta da Oliveirinha deu-me a conhecer um "outro eu" de Alves de Sousa que gostei bastante. Tenho a certeza que num par de anos este vinho terá muito mais reconhecimento. Qualidade, identidade e originalidade já não lhe faltam.
Terrine de foie gras e pera bêbada
-Façam uma compota com maça e figos, acrescentando um pouco de Vinho do Porto Branco;
-"Pintem" o foie gras com a compota anterior e polvilhem com amêndoa;
-Cubram a parte superior com a compota restante e um pouco de ameixa confitada (do caldo da pera bêbada).
-Para a pera bêbada descasquem as peras inteiras (cortando a base de modo a que depois seja mais fácil empratar) e cortem um pouco de ameixa vermelha, regando tudo com um pouco de sumo de limão. Levem a fruta ao lume com o açúcar amarelo, vinho do Porto Rubi e alguma água (a quantidade de água deve ser metade da de vinho). Juntem um pau de canela e anis estrelado. Depois de estarem cozidas, sirvam-nas bem frescas.
Perna de cabrito assada
-Temperem a perna de cabrito com laranja e limão cortados em rodelas, alhos picados, alecrim, pimentão-doce, um pouco de brandy, caldo de galinha, sal, pimenta, um pouco de zimbro esmagado e azeite. Envolvam tudo muito bem e deixem marinar durante 2 horas.
- Levem ao forno, pré-aquecido a 170ºC, durante meia hora, regando regularmente com o próprio molho.
-Juntem batatas e chalotas ao cabrito, envolvendo e regando com o molho.
-Levem novamente ao forno por mais 45 minutos, regando de vez em quando com o molho.