Caça no Egoísta | Um velho hábito
"Talvez a melhor pergunta que você pode memorizar e repetir continuamente é: qual o uso mais valioso para o meu tempo neste momento?" Brian Tracy
E lá estou eu de novo a falar do Egoísta e do chef Hermínio Costa :-P
Desta vez para partilhar convosco aquilo que me foi aparecendo no palato aquando da participação no jantar de caça no Egoísta, regado com os néctares da Brites Aguiar (uma agradável surpresa) ...
No bar foi servido o Bafarela Rosé 2015, não gostei... Aroma demasiado discreto, excesso de açúcar, demasiadas castas no lote, no entanto tinha uma boa acidez. Para acompanhar o aperitivo, cumpria apenas...
A primeira harmonização da noite foi o consomé de faisão com almôndegas do mesmo e morilles, acompanhadas do Bafarela Reserva 2014.
Este tradicional prato francês, o consomé ,que significa literalmente "consumido" ou "acabado", indica logo que esta "sopa" é mais refinada do que um simples e habitual caldo.
O de faisão, do chef Hermínio é muito intenso, saboroso e com um acabamento cristalino, é por causa de consomés como este que a maioria dos chefs o consideram o Bentley dos caldos, horas de esforço na cozinha para "apenas" alguns deliciosos minutos de prazer à mesa. As almôndegas completaram o consomé dando-lhe novas texturas e riqueza aromática, os morilles pintaram-nos com noz e fumo e a hortelã-pimenta transmitiu-lhe uma frescura arrebatadora. Todos estes sabores formaram uma bela orquestra criando uma composição sensorial muito virtuosa e complexa.
O Bafarela Reserva 2014 tem tudo aquilo que o rosé não tinha, intensidade, concentração e aromas refinados. No copo mostrou-se ruby com reflexos violeta. No aroma brindou-nos com morangos, cerejas, framboesas, violetas, pimenta preta e noz-moscada.
Falta-lhe apenas alguma complexidade, mas a falta dela não amplifica nem o álcool nem a barrica. O final é longo, polido e com boa acidez. Se este é assim, como serão os irmãos mais aristocratas?
Etapa seguinte: abram alas para a lebre com ervas aromáticas e arroz no forno, servida com o Bafarela Grande Reserva 2014.
Li uma vez n'O Caçador de Pipas que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele consegue escapar. O chef Hermínio faz com que o meu se escape muitas vezes. Não vou tecer muitos comentários acerca das memórias que este prato me trouxe, porque senão estas publicações ficam demasiado lamechas :-P Digo-vos apenas que a minha mãe costumava fazer muitas vezes comida simples, como arroz de feijão, arroz de frango ou arroz de coelho. Quase todos os dias havia um prato de arroz com qualquer coisa. A esse arroz tradicional que a minha mãe fazia, o chef Hermínio, juntou-lhe complexidade da carne nobre e a excentricidade das ervas aromáticas.
Só sei que aquela lembrança (de arroz construída) vivia dentro de mim como um pedaço bastante saboroso de um passado ainda recente, perfeitamente preservado num casulo da minha mente. Sempre ouvi dizer que o alecrim ajuda a nossa memória, não sabia é que era desta forma :-P
Este arroz nem ficou demasiado húmido, nem demasiado seco, ficou num meio termo (tal como eu estava nesse momento), entre o que já tinha vivido e o que estava a viver.
Um reparo apenas ao serviço, como este prato foi servido numa caçarola, a maior parte dos comensais que se encontrava no restaurante, quando este foi servido, ficou com a impressão que ainda poderia ser completado com algo mais, e por isso houve uma certa demora na degustação do mesmo. Neste casos, aquando da colocação do prato na mesa, ajuda que o mesmo seja apresentado, dizendo indirectamente que o que havia a ser servido já o foi.
Quanto ao vinho, podia-o resumir apenas numa palavra: elegância, mas vou-lhe acrescentar outras. Como a cor o demonstra é mais intenso e carregado que o anterior. A fruta vermelha está um pouco mais madura, surgem notas de compota, chocolate, tabaco e brisas muito ténues de acetona que lhe atribui uma complexidade considerável. Os taninos são densos mas elegantes e o final é suculento, longo e cativante.
O Brites Aguiar 2014 acompanhou o prato de veado proposto pelo chefe Hermínio Costa.
O vinho todo ele é Douro, o veado todo ele é equilibrio.
A carne tinha um sabor pleno e intenso, quase como um daqueles vinhos que apetece mastigar. Derrete-se na boca e solidifica na alma. A cebola roxa e a redução de vinho enobreceram um prato que foi mais uma lição de equilíbrio, de aromas, de sabores e de cores. Este chef é um artista que vê no prato uma tela em branco com horizontes ilimitados. Nos ingredientes encontra as suas tintas mais valiosas. A sua veia criativa, mãos talentosas e alma abnegadora faz com que misture texturas, formas e sabores fazendo de pratos como este uma das mais puras formas de arte.
O vinho é uma autentica bomba no nariz, violetas, esteva, cominhos, ameixa preta, mirtilos, amoras silvestres, compota de frutos vermelhos, barrica nobre e especiarias (noz-moscada, cravinho e pimenta preta). Voluptuoso, concentrado, musculado e tentador. Um pouco menos extraído e este vinho seria ainda maior. Longo, complexo, harmonioso e com uma acidez vibrante, é este o grandioso final que um vinho deste calibre merece.
Depois, uma surpresa que não foi caçada :-P Perna de borrego, que delicia!!! Rico, saboroso e exótico, mas também muito leve e com pinceladas de tradição.
Cozinhado em "lume brando", este é daquele género de pratos que nos faz perceber que a cozinha não é para todos e que tudo tem o seu tempo. Sempre me disseram que provavelmente a melhor pergunta que podemos fazer a nós mesmos e repetir continuamente é: Qual o uso mais valioso para o meu tempo neste momento? O meu é ser feliz. E a felicidade por vezes, ou melhor, muitas vezes, surge em momentos de descoberta como este, é um privilégio poder visitar frequentemente este museu gastronómico à beira-mar plantado, um enorme obrigado a quem mo apresentou pela primeira vez :-P
O Crumble de pêras, chocolate negro e amêndoa acompanhado um vinho do Porto Tawny 40 anos (garrafeira particular da Brites Aguiar) foi um final perfeito para esta noite de velhos hábitos.
O crumble foi mais uma prazerosa surpresa. Foi servido ainda morno, é de comer, comer, comer ... e chorar por mais. O chocolate e a amêndoa deram-lhe heterogeneidade e permitiram aquele já característico jogo de texturas, tão próprio de quem cozinha por aqueles lados :-P
Quanto ao vinho, 40 anos de evaporação e envelhecimento em barrica concentraram-no até o converter numa essência. É um vinho muito denso, parece que estamos a beber caramelo (em termos de textura) com excelente estrutura, notas de broa de mel, figos, baunilha, nozes, amêndoa e mel. Tem um final de boca interminável e um equilíbrio soberbo.
Para esta harmonização ficar perfeita só faltou uma lareira, chuva na janela, um bom livro e uma vista para o mar, pois claro :-P
Aristóteles uma vez disse que "Nós somos o que fazemos repetidamente. A excelência, portanto, não é um ato, mas um hábito."
Que este hábito se mantenha por muito tempo chef Hemínio, parabéns!!!
Créditos: Algumas das imagens constantes desta publicação foram obtidas no facebook do restaurante Egoísta.