Castas & Pratos | O lugar onde o arco-iris se ergueu
"Nunca voltes ao lugar onde já foste feliz, por muito que o coração diga, não faças o que ele diz... Nada do que por lá vires será como no passado, não queiras reacender um lume já apagado." Rui Veloso
Nunca regressem a lugar onde já foram felizes!!! Costumo ouvir e ler este estranho conselho imensas vezes, mas ao perceber que duas das minhas referências culturais (de áreas, de tempos e de latitudes tão diferentes) concordavam com ele, levou-me a dedicar-lhe alguns minutos nos meus intrigantes pensamentos pré-adormecimento.
À frase de Rui Veloso com que introduzi esta publicação junto outra de Agatha Christie: "Não se pode, jamais, voltar ao lugar que já existe na nossa memória. Não o veríamos com os mesmos olhos, mesmo supondo que, de maneira improvável, esse lugar possa ter permanecido o mesmo. O que tivemos, tivemos. Nunca se deve voltar para um lugar onde já se foi feliz, caso contrário, a memória alegre que até aí permanecia viva, será destruída".
Mas qual é o stress destas pessoas com os regressos? Porque é que não devemos voltar aos lugares onde fomos felizes pela segunda, pela terceira ou pela enésima vez? Há algum mal (quase obrigatório) associado a esta vontade de reavivar momentos felizes?
Será que essas objecções estão relacionadas com um medo inconsciente de uma possível decepção ou de não sermos felizes novamente? Será que algumas pessoas o fazem para não traírem a memória ou os bons momentos que lá possam ter vivido e por temerem que estes sejam irremediavelmente substituídos por uma experiência diferente e não necessariamente tão boa?
Ou será antes, pela temível possibilidade de percebermos que a nossa mente, como o decorrer do tempo, tenha deificado essa felicidade que supostamente vivemos. Nesse caso, o regresso a esse lugar não passaria de uma simples constatação que a felicidade se confundiu com saudade, algures numa sinapse perdida no nosso cérebro.
Na verdade não sei qual destas hipotéticas respostas se aproximará mais da verdade. Só sei que no meu caso, gosto de voltar aos lugares onde já fui feliz. Não só aos lugares, mas também às pessoas, com as pessoas. Se já lá fui feliz uma vez, porque carga de água não poderei ser feliz novamente? Aliás, porque não poderei ser ainda mais feliz?
Como é óbvio não posso garantir que esse regresso seja obrigatoriamente bem sucedido e desprovido de infelicidade, mas caso esta não seja uma nova experiência totalmente satisfatória, há algum problema com isso? Não podemos é deixar que a felicidade que esse lugar ou essa pessoa nos deu no passado seja roubada ou fundida com uma inesperada má vivência no presente, condicionando possíveis retornos no futuro.
Esta implicação com os regressos quando relacionada com a gastronomia parece-me ainda mais destituída de racionalidade, pois quer na gastronomia quer na vida, para seguir em frente, temos muitas vezes de regressar atrás (bem esta saiu um pouco mais profunda do que aquilo que eu estava à espera :P).
Tudo isto a propósito do local sobre o qual escrevi a primeira critica gastronómica do blogue, em Março de 2015 (o tempo passa rápido): o restaurante Castas & Pratos. A visita ocorreu de modo bem diferente das actuais, sem caderno, sem máquina fotográfica, sem noção ... sem a Bia e sem o Gui.
Na altura escrevi o seguinte: "O Castas e Pratos fez-me querer libertar todas as inocências que ainda carrego, uma por uma, mas com calma, sem pressas. Despertou-me a querer ter um dialogo incessante com o meu palato até ao fim dos meu dias, serenamente. É um restaurante que vale pelo todo, uma espécie de comboio degustativo do passado, que nos transporta no presente para estações sensoriais que teremos saudades no futuro. Iniciei esta minha viagem num dia de nevoeiro no vale do Douro, regressarei, certamente, para uma outra primeira vez, inédita, indelevelmente..."
É sobre essa outra primeira vez, inédita, indelevelmente que vos falo hoje. Castas & Pratos, abreviadamente CP, condiz com o local onde se situa (num antigo armazém da estação de comboios da Régua), que foi remodelado por vontade de dois empreendedores (o Edgar e o Manuel), ligados por laços familiares (são primos), e movidos pela ambição de fazer diferente e também pela paixão em comum pelo Douro.
Essa paixão pela região duriense está não só bem patente na gastronomia moderna e criativa, mas sem nunca descurar o canône gastronómico da região, como também na carta de vinhos, muito vasta, com qualidade e heterogeneidade, sobretudo no que ao Douro diz respeito. A sala de jantar harmoniosamente distribuída por dois pisos (e quando o tempo permite por uns vagões em plena via férrea!!!) está cheia de bom gosto, conforto, requinte e memória.
Desta vez o repasto começou com um Ravioli de perdiz, mourilhas e foie gras, quase perfeito e um dos pratos que mais me marcou neste ano. Digo quase perfeito, porque a acrescentar à intensidade, voluptuosidade e subtileza só faltou mesmo um empratamento que engrandecesse, esteticamente, um pouco mais, a nobreza dos aromas e dos sabores nele contido.
Seguiu-se um Polvo em azeite e ervas, batata salteada com alcaparras, tomate cherry e chalotas. Levemente glaceado por fora, quase que levemente fumado, e por dentro gulosamente tenro, saboroso e suculento. O sal estava no ponto e combinava na perfeição com a irreverência avinagrada das alcaparras, com a acidez alegre do tomate e com a doçura aristocrata das chalotas. Delicioso e bastante complexo.
No prato de carne surgiram na mesa, com certa formalidade, uns Milhos no pote e costelinhas de javali em vinho tinto. Um prato guloso, intenso, saboroso e cuja confecção conduziu a pedaços de carne untuosos, ricos, a desfazerem-se no prato e incrivelmente macios.
A carne de javali era de uma textura tão delicada que quase que não era necessário mastigar. Rico, aromático, levemente acídulo, que quando conjugado com a ligeira doçura dos milhos, se assumiu como uma criação que ainda hoje me faz salivar. De comer e chorar por mais!!!
Antes de passarmos para as sobremesas não posso deixar de chamar a atenção para o menu infantil, um Filete de dourada (sem espinhas e sem pele/escamas) com batata e arroz branco a mostrar que também a pequenada ali é muito bem tratada (não sobrou nada do peixe!!!). Por falar em pequenada, vamos então à parte que normalmente é a favorita deles, começamos pela elegância do Limão com crumble, mousse de limão e finacier de amêndoa, que exibia uma provocante crocância exterior, enquanto que por dentro nos brindava com uma mousse muito fofa, fresca e graciosa.
No entanto o meu destaque vai para o Ovo, com mousse de queijo, recheio de doce de ovos, terra de chocolate e maracujá e massa kadaif. Tem tudo o que eu gosto numa sobremesa: sabores originais, doçura q.b., muita acidez, untuosidade, texturas contrastantes e complementares, apresentação cuidada e uma fusão harmoniosa (e nada evidente) de diferentes influências/técnicas.
Na companhia das notas citrinas, de resina, de mel e de amêndoas trazidas por um belo Porto, este é um prato para ser desfrutado com calma, sem pressas e com um certo sorriso trocista para com a frase que introduziu esta crítica gastronómica, pois muitas vezes essas regras da sensatez chocam de frente com a intemperança saudosista dos bons momentos que, como este, celebram a vida junto daqueles que mais gostamos, nos sítios que mais gostamos a fazermos aquilo que mais gostamos.
Assim, desta vez, quem não cumpriu foi mesmo o Rui Veloso. Não, não foi por alguém não ter tirado o vestido (:P), foi porque aquilo que ele também havia prometido, o de apenas encontramos cinzas de memórias passadas quando regressássemos a um lugar onde o arco-iris já se pôs (onde já não podemos encontrar as alegrias passadas), manifestamente não aconteceu. Fica prometida uma nova visita, e para mim, o prometido é mesmo devido... ;)