Caves Taylor's | O berlinde gabarolas que cheirava a um sonho
"Por acaso não pensei no que significaria para as outras pessoas, apenas pensei no que significava para mim. Hoje sei que o que deveriam ter enviado eram poetas, porque acho que não conseguimos capturar, na totalidade, a grandeza do que havíamos visto ." Frank Borman (comandante da missão Apollo 8)
Às 6h31 do dia 21 de Dezembro de 1968, um sábado, o mundo susteve a respiração no momento em que a NASA lançava a sua primeira missão tripulada à lua. Quando os astronautas William Anders, Frank Borman e Jim Lovell se afastaram em direcção ao espaço, deixaram para trás um planeta "em chamas".
Martin Luther King e Robert Kennedy tinham sido assassinados; quase toda a África passava fome; a Guerra do Vietname intensificava-se; o conflito civil/estudantil começava a espalhar-se por toda a América do Norte, especialmente a partir dos confrontos relacionados com a convenção do partido Democrata em Chicago (já agora vejam o filme "Os 7 de Chicago" que vale bem a pena ;)); e os tanques soviéticos esmagavam a esperança da Primavera de Praga.
É neste cenário que a NASA põe "as fichas todas na mesa" para vencer a corrida espacial aos russos, com a missão Apollo 8, uma missão tão repentina quanto controversa. Felizmente e contra alguns maus agouros, os 3 astronautas conseguiram dar a volta à lua, 10 vezes, regressando em clima de celebração para a tumultuosa Terra. Pela primeira vez, havíamos conseguido viajar para fora do nosso berço planetário, mas o verdadeiro legado desta missão revelou-se apenas passados três dias, a 30 de Dezembro, quando a NASA divulgou uma imagem, a cores, tirada na véspera de Natal pelo astronauta Bill Anders e que mostra nosso planeta suspenso acima da lua, quase como uma bola de Natal.
Com a Apollo 8 partimos em direcção ao espaço mas, paradoxalmente, o que nós verdadeiramente encontrámos foi ... a Terra e a oportunidade de remodelarmos a forma como nos víamos e de unirmos aquilo que nunca deveria ter sido separado. Há quem conheça esta fotografia pela expressão "o nascer da Terra", que entretanto se tornou lendária e uma das mais publicadas, uma espécie de selfie com 2.5 biliões de pessoas. Toda a gente estava nela, ainda que implicitamente, pois parte estava "do outro lado".
É verdade que nessa missão já haviam sido tiradas fotografias belíssimas, mas esta, em particular, tinha algo de diferente, algo epifânico, algo que roçava o poético. Foi tirada por um humano (e não pela lente calculista de um super-computador), não estava planeada e a nossa Terra saiu-se particularmente bem naquele preciso instante, com um azul berlinde gabarolas a sobrepor-se à escuridão do espaço e ao horizonte lunar sombrio, quase monocromático e em primeiro plano.
Graças a esta imagem, os humanos puderam ver, pela primeira vez, a sua casa comum, não como um conjunto de continentes ou oceanos, mas como um mundo que era inteiro, inseparável, belo, redondo, pequeno e vulnerável. Foi também por tudo isto que quando a Claire Aukett, a nossa amicíssima anfitriã aquando da visita às Caves Taylor's me disse para escolher um vinho para provar (e que ainda não tivesse provado) a minha eleição recaiu no Taylor’s Single Harvest de 1968. Mas antes do vinho, falemos das caves...
Estas caves albergam a maior parte das grandes reservas de vinho do Porto envelhecidos em madeira da empresa, bem como as suas garrafeiras de vinho do Porto Vintage. São armazéns misteriosos, longos, frescos e escuros, com as suas grossas paredes de granito e tectos altos, que ajudam a manter uma temperatura uniforme durante todo o ano, permitindo que os vinhos envelheçam lentamente e que gradualmente adquiram os sabores e aromas sublimes/complexos da maturidade.
Perfazendo já quatro séculos de existência, a Taylor’s procedeu recentemente à renovação das suas caves tricentenárias, por forma a incluir um programa de visitas no seu novo e inovador museu onde a história do vinho do Porto e da Taylor’s surge interligada através de um áudio-guia, de filmes, de material documental, de exposições, de fotografias e de pinturas. Acho esta estratégia muito interessante pois permite a obtenção de informação mais detalhada a quem o pretender, ao mesmo tempo que evita a "seca" de quem quer apenas uma visita menos pormenorizada.
Gostei particularmente do modo como a visita às caves está articulada com o museu, dando-nos a oportunidade de viajar até ao passado e aprender mais sobre as histórias do vinho do Porto e da casa Taylor’s, histórias essas que muitas vezes são indissociáveis. Tudo isto em clima de máxima segurança, mas para quem conhece a Taylor's, isso já não é grande novidade. Passando aos vinhos...
Depois do amarelo-palha Taylor's Chip Dry White Porto (16.50 €, 85 pts.) e as suas notas muito frescas a maçã e alperce, embaladas por uma tosta muito bem integrada e uma acidez crocante; e do violeta-purpura Taylor's Late Bottled Vintage 2014 (16.90 €, 89 pts.) com morangos, amora, groselha, casssis, hortelã-pimenta, acidez aguerrida, complexidade e elegância, chegávamos a dois assuntos muito sérios...
Já com uma evolução evidente na cor grená-tawny escuro o Taylor's Vintage 1985 (90.00 €, 95+pts.) só agora começa a perder a sua fruta primária (cassis, cereja e ameixa seca) dando origem a notas de couro, figos, chocolate, pimenta preta, cravo-da-índia e algum café. Posso estar enganado, acho que não estou, mas acho que temos vinho para pelo menos mais uma década. Nada anormal para as coisas bonitas nascidas em 1985 e que só melhoram com o decorrer do tempo... ;)
O castanho-aloirado Taylor's Single Harvest 1968 (399.00 €, 98+ pts.) parece-me muito mais fino e "gabarolas",(quase como um pavão) que as edições anteriores e está cheio de camadas, com noz, alcaçuz, caramelo, pimenta, canela, maçapão e cravo-da-Índia, tudo muito ponderado, equilibrado e harmonioso. O palato é sustentando por uma elevada densidade, textura aveludada, uma elegância vincada e uma acidez muito bem integrada. O final é sedutoramente interminável...
Tido por muitos como o ano que mudou o mundo, 1968 aprisiona um conjunto muito denso de acontecimentos, uns bons, outros maus, mas todos eles marcantes. De um modo ou de outro, não é possível dissociarmo-nos desses episódios enquanto apreciamos um vinho deste gabarito. Ao prová-lo, por acaso não pensei no que significaria para as outras pessoas, apenas pensei no que significava para mim. Neste berlinde vínico para além de uns terciários avassaladores também cheirei a ironia da missão Apollo 8, as notas do My Way de Frank Sinatra e o sonho de harmonia e igualdade de Martin Luther King.