DOP - Chef Rui Paula | A ousadia da consistência
"Somente os tolos exigem a perfeição, os sábios contentam-se com a coerência." Provérbio Chinês
Eça de Queirós defendia que o tempo, e só ele, daria verdadeira consistência à vida e à sorte. Só ele poderia separar o hábito da casualidade. Essa verdade de Eça procurava transmitir algo que Aristóteles já havia deixado na nossa memória colectiva: que somos aquilo que fazemos repetidamente, seja qual for o contexto. A excelência, vigiada impiedosamente pelo tempo, deixa, assim, de ser um acto (que poderia resultar de uma brisa de sorte), para passar a ser um hábito que se cultiva diariamente.
Na minha opinião é essa consistência que primeiramente faz um grande Chef. Seja nos sabores ou na apresentação, cada vez que um prato, por vezes de forma inconsciente, ajuda a formar um padrão em quem o aprecia, junta mais uma peça aquele que é o puzzle identitário do Chef que o concebeu. Essa construção, garfada após garfada, pode também ser definida como a memória gastronómica que vamos associando a algum lugar ou a algum Chef.
Esta construção de identidade baseada na consistência e memória, é algo que dá muito trabalho nos dias que correm, demasiado acelerados e em que as modas estão em constante evolução. Ainda assim, quando falamos de gastronomia de topo, o foco continua a ser a criação de experiências gastronómicas originais materializadas numa cozinha que potencie autenticidade. Autenticidade essa em termos de tradição, inovação, identidade e consistência.
Já disse muitas vezes, que neste nível de gastronomia, cozinhar é uma arte e, tal e qual como acontece com os pintores, com os poetas ou com os músicos, os Chefs gostam de, por vezes, ousar inventar algo novo no seu ofício, mas sem adulterar a alma da sua identidade. Se quando repetimos a ida a um Estrela Michelin ou visitamos outro restaurante de um Chef que apreciamos muito, nos sentirmos defraudados com algum dos pratos, por aquela peça não fazer sentido no puzzle que íamos construindo, alguma coisa correu mal: com o artista, com a obra ou com quem a executou.
Se já é difícil para um Chef manter a consistência num restaurante, a tarefa tornasse hercúlea quando se pretende criar obras de arte gastronómicas em diferentes espaços, com diferentes públicos, para diferentes preços e por vezes executadas pelas mãos de quem não concebeu essas obras. É aqui que a consistência se cruza com a excelência.
Para vos passar a minha visão deste "cruzamento" ideológico vou contar-vos uma história, que a pessoa que me convidou para trabalhar na Universidade do Minho (em 2006!!!) me contou em jeito de "conselho de carreira". Percebi no final da história que esse conselho havia sido dado, 30 anos antes, pelo seu orientador de doutoramento. A história é assim...
Certa vez, um cavalheiro visitou um templo em construção onde viu um artista a esculpir uma imagem de um deus numa pedra. Imagem essa que havia sido desenhada, com bastante detalhe e rigor, pelo seu mentor que no momento se encontrava ausente devido a doença. De repente, ele reparou que nas proximidades havia já outra escultura idêntica. Surpreso, o cavalheiro perguntou ao escultor porque é que ele precisava de duas estátuas iguais, representando o mesmo deus.
O escultor, sem desviar o seu olhar da obra que tinha entre mãos, respondeu-lhe que não, acrescentando que estava a fazer outra, porque quase no final, a primeira escultura tinha sido irremediavelmente estragada. O cavalheiro examinou a escultura e não encontrou nenhum dano aparente... «Há um pequeno arranhão no nariz, resultante de um descuido meu», disse o escultor, ainda embebido no seu trabalho....
Após muito procurar, e de limpar várias vezes os óculos, o cavalheiro lá conseguiu encontrar o tal arranhão. «Mas o teu mentor vê assim tão bem, ao ponto de conseguir reparar nesse pequeno arranhão?» Na ausência de resposta, fez outra pergunta. «Mas afinal onde é que a estátua vai ser colocada?" O escultor, visivelmente irritado com as consecutivas distracções, respondeu que a estátua seria colocada no topo de um pilar com seis metros de altura.
O cavalheiro ficou ainda mais confuso e inquieto com resposta do escultor. Se a estátua iria ser colocada tão longe e apenas com um pequeno arranhão, quem é que iria dar por ele? Nesta altura o escultor parou de trabalhar, levantou-se, sorriu e com toda a calma disse: «Eu iria saber que o risco está lá. E que esse risco tinha sido resultado de uma incompetência minha. Vês algum risco neste projecto do meu mentor?»
"Sempre que decidires subir uma montanha não o faças com a intenção de que o mundo te veja, faz isso com objectivo de ver o mundo." Terminou assim a história da minha orientadora. O que é que eu aprendi com isto? Que o anseio pela excelência é independente do facto das outras pessoas gostarem ou não, saberem ou não, perceberem ou não. A excelência é uma bitola interior, não exterior, pois não a cultivamos para que os outros notem, mas para garantirmos a nossa própria satisfação, felicidade e evolução, isso, a longo prazo, assegura-nos consistência. Basta um desleixo para voltarmos ao inicio da história e da construção dessa consistência.
Penso que seja também essa filosofia que assegura a consistência de um Chef que vos vou falar hoje, o Chef Rui Paula. A critica resulta de uma visita ao DOP, no Porto, mas bebeu inspiração (e informação) de outros encontros, em eventos, no DOC e na Casa de Chá da Boa Nova. O DOP procura brindar os comensais com experiências gastronómicas inesquecíveis, com incursões pelos verdadeiros clássicos da cozinha portuguesa reinterpretados e elevados pelas mãos do Chef Rui Paula.
Goza de um ambiente descontraído, calmo, causal, e com vista para o centro histórico da cidade invicta. Ao contrário das outras duas casas, o DOP foi pensado para funcionar dentro de uma cidade movimentada como o Porto, com bom gosto, com alma cosmopolita, mas ao mesmo tempo com um aconchego familiar que nos faz sentir em casa.
O nosso almoço começou com as boas-vindas em forma de snack estilo finger-food: uma salada de polvo com coulis de pimentos, muito fresca e mini hambúrguer de vitela untuoso e carregado de sabor. Seguiu-se um Carpaccio de Polvo, com azeitonas em diferentes texturas (explosão de azeitona verde, azeitona desidratada, coulis de azeitona preta, tosta de azeitona e merengue de azeitona). Diferentes técnicas, incluindo a cozinha molecular, potenciaram uma experiência gastronómica sublime. Desde a explosão de sabor que a esfera de azeitona não fazia antever, até à textura sedosa do polvo, passando pela complexidade dos aromas encontrados.
A interpretação de Rui Paula da Açorda de Bacalhau surgiu logo de seguida, com brandade de bacalhau (uma emulsão de batata, bacalhau e azeite), croutons de pão, lascas de bacalhau, gema de ovo confitada em azeite, espuma de bacalhau e caviar de azeite. Dá um traje de gala, muito mais texturas e diversas camadas de sabor a um prato que organolepticamente respeita a tradição da cozinha genuinamente portuguesa. É intenso, rico, elegante, saboroso, equilibrado e voluptuoso. Uma delícia!!! O Rebolar Branco 2018 emprestou-lhe mineralidade, frescura, citrinos e uma ligeira tosta. Bela harmonização!!!
O Linguini Nero, amêijoa, robalo e lula, com linguini de tinta de choco, filete de robalo cozinhado no forno, molho de ameijoa e calamares; é um prato de massa com sabor a mar e a fumo. A massa estava estupenda (a Bia disse que não se importava de comer só a massa), a lula estava crocante, untuosa e ligeiramente fumada, o robalo cozinhado na perfeição e o singelo tomate acrescentava a cor e a acidez que o prato precisava. É um prato muito guloso e que nos faz querer "limpar" o molho que sobra no prato com um pouco de pão. ;) O sommelier Cláudio, muito profissional e atencioso, escolheu a mineralidade, a frescura e a ligeira untuosidade do Niepoort Conciso Branco 2018 para a harmonização, revelou-se uma escolha super acertada.
Antes das sobremesas, Vazia maturada e batata doce, com batata doce em diferentes texturas, cogumelos, legumes salteados e molho chimichurri. A complexidade, doçura, acidez, fumados, adstringência e uma alma enorme trazida pelo puré de batata doce, quase que nos fazia esquecer que no prato havia também carne, quase... ;) Carne essa que exibia uma deliciosa crocância fumada no exterior e um suco muito rico aprisionado no interior. As pedras de sal davam-lhe ainda mais garra, fazendo realçar a nobreza dos seus sabores. As notas florais, couro, e elegância do Fraga Alta Tinto 2004 foram uma excelente companhia.
Como pré-sobremesa, Curd de limão, ananás macerado, uvas congeladas, merengue de ananás e sopa de eucalipto, com um mix de frescura, vegetalidade, acidez e doçura. Acredito que cada um dos elementos não funcionariam individualmente, em conjunto proporcionam uma experiência muito agradável, tendo ainda a funcionalidade extra de despertar o palato para a parte final da refeição. A dedicação colocada nesta "pré" criação, pensada "apenas" para fazer a transição entre momentos, mostra exigência com que ali se trabalha. A Manga, coco, lima e malagueta, com daquoise de côco, manga em picle, manga fresca, véu de yuzo, sorvete de manga, lima caviar, mousse e nuvem de côco; é um prato que evoca a alegria e as cores da primavera, materializado numa espécie de tarde de coco gourmet elevada pelas diferentes texturas e enorme acidez. O Secret Spot Late Harvest Petit Manseng 2018 acrescentou a todos estes predicados, damasco confitado, intensidade e uma vincada frescura.
Por último, Chocolate de S. Tomé, banana e fava tonka, parfait de banana com praliné, sorvete de banana, chip de banana desidratada, mousse de chocolate com fava tonka e bolo de cerveja preta. Ligeiramente/deliciosamente salgado, demonstrou-se camaleónico na prova pois a cada momento iam surgindo diversos sabores, contrastes, intensidades, harmonias e texturas. Uma sobremesa consistente (;)) e que merece ser degustada com tempo e com os frutos secos, caramelo, amargura, sumptuosidade e excelente acidez do Blandy's 10 anos Bual.
Este foi um menu que foi de encontro aquilo que vos disse no inicio acerca da consistência do Chef Rui Paula. Um Chef que sabe usar a experiência naquilo que ela garante, mas também se sabe libertar dela, naquilo que ela prende. É um autentico artista dos sabores, das texturas, dos aromas e das temperaturas, que procura criar propostas com base no cânone gastronómico português mas sempre com uma boa dose de ousadia, irreverencia e sentido estético. Mas mais importante que essas mais-valias é o facto de ter conseguido transmitir tudo isso à sua equipa, fazendo com que a consistência da excelência parta de dentro para fora, quer o mestre esteja no restaurante, quer esteja a pintar obras de arte comestíveis noutro sitio qualquer. A certeza é só uma: ali ninguém vai deixar arranhões no nariz da estátua... ;)