Essência do Vinho - Porto 2018 | Sentir sem possuir
"No final de todos os arco-íris existe uma porta, basta encontrar a chave da esperança. Mas, para isso, é necessário descobrir a essência da vida. Acordar de manhã e dizer bom dia, levantar-se com um sorriso. É ficar horas e horas cantando para a lua e ver desenhos nas nuvens. É sair com os amigos e divertir-se, é fazer os outros sorrirem mesmo que estejas triste. É ter esperança que os sonhos possam ser verdadeiros, mesmo quando todos dizem que é mentira. A essência da vida está em cada um de nós…" Miguel Sousa
Um vinho pode ter uma quantidade de aromas variável, para uns um ou dois, para outros quase tantos aromas como os que as nossas memórias conseguem identificar. No entanto, os grandes vinhos têm a capacidade invulgar de nos conquistar ao primeiro contacto com o nariz.
Os aromas podem ser florais (rosas, violetas, flor de laranjeira…), frutados (citrinos, amoras, morangos, mirtilos…), de estágio (chocolate, amêndoa, baunilha…) ou de evolução (cedro, mel, couro…). E tal como o perfume que usamos, também os vinhos que escolhemos podem dizer muito daquilo que somos.
Vem esta introdução a propósito do Essência do Vinho - Porto 2018 e dos vinhos que eu escolhi para os destacar aqui no blogue.
Começo por um vinho de Bordéus, o Mouton Cadet Sauternes Reserve 2010. É um surpreendente colheita tardia, de dourado-palha trajado e com intensos aromas a flor de laranjeira, lima, pêra e damasco. Existem ainda umas brisas suaves a mel, avelã e baunilha. Tem um rodapé fumado que não o torna cansativo. No palato prolonga os aromas do nariz e é persistente, elegante e complexo.
Nesta 15ª edição do Essência do Vinho - Porto estiveram presentes mais de 20.000 pessoas, cerca de 35% das quais estrangeiras. E apesar deste número astronómico (ao qual vou juntar outro, 4,8 milhões de pessoas foram "atingidas" nas redes sociais) pareceu-me que neste ano houve uma melhor gestão/optimização do espaço, permitindo que as pessoas pudessem circular mais livremente e manter amenas cavaqueiras com os produtores.
Enquanto conversava com um desses produtores, o grande Alves de Sousa convenceu-me a provar o seu último Reserva Pessoal Branco. Um vinho que só aparece em anos excepcionais e que, segundo o próprio, deveria de ser vendido com um manual de instruções ;).
Faz parte daquele grupo que nos conquista logo ao primeiro contacto com o nariz: esteva, maracujá, mel, casca de laranja caramelizada, canela e pimenta branca. Surgem também algumas notas resultantes da evolução em garrafa como a resina e os apontamentos petrolados. O que é realmente inesperado é que o ligeiro toque adocicado no nariz se transforma numa agradável secura untuosa no palato. É delicado, complexo, encorpado, fresco e deliciosamente longo.
Continuando nas surpresas em forma de branco e com mel no aroma, gostei mesmo muito do Procura branco 2015. Os 80 anos da vinha pintaram-no com complexidade e elegância, os 700 metros de altura deram-lhe acidez e firmeza. Para além do mel exibe (com orgulho) damasco, acácias, feno, flores brancas, alguma manga e canela. Fresco, firme e denso, acaba com um final que não deixa ninguém indiferente, com bastante nervo e profundidade. Tem tudo para ganhar complexidade com o tempo e ficar um grande vinho.
Nos Porto o meu favorito foi o Warre Porto Vintage 1980. Este vinho é muito agradável com um nariz carregado de anis, cacau, figos, iodo, alcaçuz, caramelo, violetas, resina, bolo inglês e um pouco de fruta vermelha. O anis é o primeiro aroma a surgir, e o último a partir. Os quase 40 anos em garrafa tornaram o palato subtilmente integrado, harmonioso, bem equilibrado e com um excelente (e duradouro) final. É um vintage "no topo da sua carreira" e foi uma sorte prová-lo nesta altura...
Contrariamente ao que costuma acontecer guardei para o final dois tintos, ambos de Alves de Sousa. O Reserva Pessoal 2008 e o Quinta da Gaivosa Vinha de Lordelo 2013. O Reserva Pessoal com violetas, ameixas, cerejas, pinho, alcaçuz, couro e alcatrão. Suave como veludo e com uma estrutura refinada, possui uma frescura encantadora.
Também encontrei alcaçuz no Quinta da Gaivosa Vinha de Lordelo 2013. Apesar de menos evoluído que o anterior (há coisas que só vêm com a idade :P) este vinho seduziu-me mais. Combina acidez, maturação e elegância. O nariz é muito intenso com ameixa em compota, violetas, menta, pimenta preta e caixa de tabaco. Na boca é inquietantemente complexo, harmonioso e equilibrado, um hino ao que de melhor se faz no Douro. São dois bons amigos, com os quais convém ir falando frequentemente :P
Aliás, se pensarmos bem, a amizade tem muito a ver com uma garrafa de vinho. Há sempre uma data em que ambas são rotuladas, as boas vão melhorando com o tempo, as más, é melhor nem falar... E depois, há algumas, que apesar de as vermos poucas vezes, são as que mais gostamos. Quando iniciamos uma amizade ou abrimos uma garrafa de vinho, obrigatoriamente temos de procurar três aromas: o do compromisso, o da sinceridade e o da lealdade. Ironicamente, estes dois mundos, o dos amigos e o dos vinhos, unem-se num singelo acto, o de brindar. Ao brindarmos, prolongamos aromas, reavivamos memórias, eternizamos laços. Assim é a amizade, assim são os amigos, assim é o vinho.
Um desses amigos publicou no instagram que na essência da vida está a felicidade de cada momento, em sentir esse momento sem a necessidade de o possuir, como defende Fernando Pessoa. Na felicidade sentida e não retirada. Acho que essa frase resume bem o Essência do Vinho - Porto 2018: a fortuna de entre amigos, percebermos que no final de todos os nossos arco-íris existe uma boa garrafa de vinho. Não para para ser possuída ... mas para ser conversada.
Até para o ano ;)