"Deixem que o barco que carrega a vossa vida seja leve e embalado apenas com o que realmente precisam: uma casa acolhedora e amiga, prazeres simples, um ou dois amigos (que valham essa designação), alguém para amarem e alguém para vos amar. Levem ainda o suficiente para comer e o suficiente para vestir. Para beber, levem um pouco mais do que o suficiente para sobreviverem; a sede é uma coisa perigosa e o vinho demasiado  delicioso, alegre, delicado e amigo." Jerome Klapka Jerome

Vamos fazer uma viagem no tempo? O cheiro a cedros paira no ar e a poeira começa a entrar nos nossos pulmões. Há ainda o sol, o calor, o barulho e a humidade ...  aos quais não conseguimos escapar. Surpreendentemente há também um doce e calmante sabor a vinho a passar-nos pelos lábios, funcionando quase com uma pausa na agitação de uma fascinante civilização. É assim o Líbano, no ano 800 antes de Cristo. Mas, ainda não é para aqui que quero "viajar" e iniciar a história de hoje. Entremos então na narrativa sobre grande dilúvio Bíblico.

No livro de Gênesis (9:20-27) da Bíblia, Deus arrepende-se de ter criado o Homem, devido à maldade que este espalhara na Terra. Como forma de corrigir este Seu "erro", decide provocar um enorme dilúvio, fazendo com que tudo que havia sido criado até então, desaparecesse. Contudo, decide poupar Noé e sua família, por estes serem inocentes e virtuosos, orientando-o a construir uma arca, na qual ele haveria de ficar por 40 dias e 40 noites, à espera do fim da inundação. Na arca de Noé estavam ainda a sua esposa, os seus filhos e respectivas mulheres, além de um casal de cada espécie animal.

No fim do dilúvio, Deus estabeleceu uma aliança com os Homens, prometendo que nunca mais os destruiria. E Noé, num gesto de agradecimento, ao descer da arca, constrói um altar e planta uma vinha, a vinha primogénita. Acabando por ter, momentos mais tarde, a primeira borracheira da história da humanidade ;)

Ao plantar a vinha, Noé, está literalmente, a criar raízes nesse território. Foi assim que o ser humano descobriu a agricultura, o vinho e deixou de ser nómada, criando também raízes na terra. Desta forma, a vinha, a uva e o vinho passaram a ser símbolos da nossa evolução enquanto espécie. É por isto, que quando nos juntamos com os amigos para beber uns belos copos de vinho, não o fazemos para saciar o nosso apetite gulosamente enófilo. Não meus amigos, fazemos-lo para, desinteressadamente, honrar a aliança que Noé fez com Deus, não vá Ele chatear-se de novo ;)

Esse pacto divino, foi mais uma vez celebrado, entre amigos, no Essência do Vinho Porto 2019, que neste ano contou com mais de 20 mil visitantes (30% dos quais estrangeiros) e terá gerado na cidade do Porto um retorno de receitas, directas e indirectas, estimado em cerca de 3,5 milhões de euros, obrigado Noé ;)

Na edição deste ano, tivemos momentos inesquecíveis, como a prova Vinhos do Porto de Sonho, cujo vinho mais antigo era de 1870 e o vinho mais novo de 1970; e a prova Liber Pater com a estreia mundial da colheita 2015, um vinho de Bordéus raríssimo, o que ilustra bem a importância que este evento já granjeou.

O Quinta da Touriga-Chã 2016 (tinto), o Principal Grande Reserva 2011 (branco) e Dow’s Porto Vintage 2016 (fortificado) foram os rótulos que mais se notabilizaram entre a comitiva de especialistas, naquela que é a mais antiga competição realizada no nosso país. Eu vou destacar mais alguns, por os ter achado demasiado deliciosos, alegres, delicados e amigos.

Começo pelo Valle Pradinhos Reserva branco 2017 (85 pts). Uma combinação invulgar entre as castas alsacianas Riesling e Gewürztraminer com a transmontana Malvasia Fina, deu origem a um vinho elegante, cremoso e mineral, cujos aromas se destacam a toranja, damasco, casca de limão verde,  maracujá, manga, violetas e rosas secas.

Este vinho serve ainda para retomar as pontuações dos vinhos pelo blogue (a pedido de algumas famílias :)), que ocorrerá sempre que os mesmos atinjam a fasquia dos 80 pontos.  Continuando nos brancos do Douro, gostei muito da untuosidade, fumo, zimbro, baunilha, lima, toranja, palha molhada, mineralidade, intensidade e excelente textura do Titan of Douro Vale dos Mil Branco 2016 (87 pts).

Passando para os tintos, realce para o especiado, rico e complexo Calda Bordaleza Campolargo Tinto 2010 (89 pts), carregado de cassis, cedro, anis, framboesa, cacau e taninos aguerridos mas sedosos. Mas o que verdadeiramente me surpreendeu foi o Quinta da Basília Super Premium 2013 (91 pts).

As 35 castas da vinhas velhas dotaram o vinho de uma intensidade, elegância, complexidade e equilíbrio estonteantes. Ameixa, amoras silvestres, cerejas maduras, um toque de groselha, esteva, violetas, chocolate e uma fabulosa acidez são os melhores predicatos deste vinho.  A excelente estrutura, a elevada acidez e os taninos bastante sedosos garantem-lhe um excelente potencial de envelhecimento.Falta apenas distinguir o melhor dos Portos provados. E aqui não houveram duvidas: Quinta do Noval Vintage 2016 (97 pts). Muito denso e conversador no nariz, com chocolate preto, notas mentoladas, figos, amoras e café. Quando a fruta bastante intensa começa a atenuar surgem ainda o cassis, o alcatrão e o alcaçuz. No palato é muito concentrado, fino, complexo  e longo.

Para além dos vinhos, ainda houve tempo para participar numa concorridíssima prova conduzida pela Marta Ágoas (representante Riedel - Portugal), na qual foi possível perceber que o copo adequado, para além de potenciar largamente a qualidade do vinho, também tem um papel bastante determinante quando bebemos água e ... Coca-Cola ;) Se ainda não participaram numa destas provas Riedel, façam-no porque valem bem a pena.

Na prova comentada Dão, Vinhos à Prova do Tempo foi possível compreender a elegância e versatilidade gastronómica desta região. No entanto, a sua melhor característica será, porventura, a sua excelente evolução, com uma graciosidade que tantas vezes lembra a Borgonha.

É disso exemplo o delicioso bouquet com aromas de barro, café, chá, tabaco, couro e ainda alguma fruta vermelha, especiarias e notas florais exibido pelo Quinta da Fata Reserva Tinto 2007 (89 pts). 

E por falar em Borgonha, encontramos alguns memoráveis na prova Tintos fabulosos do Velho Mundo, onde para além destes foram dados a provar vinhos de cortar a respiração, da Alemanha, Espanha, Itália, Líbano e Portugal. Castas, denominações, entendimentos e perspectivas que fazem da singularidade de cada projecto a maior das mais-valias.

Este prova foi magistralmente conduzida por Alexandre Lalas (Revista de Vinhos), Guilherme Corrêa (Wines by Heart), e Igor Beron (Wines by Heart), cuja paixão pelo vinho nos faz ficar quase stalkers ;) 

Deste velho mundo destaco, para já, o Gran Reserva 904 La Rioja Alta 2009 (95 pts). Sous-bois, couro, toques de iodo, violetas, cerejas negras, amoras, nozes,  fumo e aromas balsâmicos.  Complexo, equilibrado, harmonioso e bastante intrigante!!!

A Wines by Heart de Guilherme Corrêa  e Igor Beron esteve ainda presente na prova Um "Novo" Novo Mundo, onde o lema, permitir que o vinho toque a alma e o coração do maior número de pessoas possível, foi levado ao extremo.

Apesar de alguma disputa com o Doktor Mayer Pinot Noir Timo Mayer 2017 (90 pts),Yarra Valley, Austrália, gostei um pouco mais do The Ermit Syrah Pax 2015 (91 pts),Califórnia, EUA, com as suas notas de framboesa madura, cereja preta, mineralidade, tabaco, couro, especiarias e ligeiro vegetal. Excelente acidez, bom equilíbrio e  muita ousadia. Mas recuemos para a prova do Velho Mundo. 

Fiquei completamente apaixonado pelo Château Musar Rouge 2003 (95pts) de Bekaa, Líbano. Demorou sete anos a ser produzido, e é uma mistura de Cabernet Sauvignon, Carignan e Cinsault. Pão torrado, caixa de charutos, folhas de chã seco, ameixas, tâmaras, figos, cerejas, chocolate preto, uma brisa marítima e uma pitada de brett (diminutivo de brettanomyces, uma levedura que faz com que os vinhos adquiram aromas a cavalo suado, cão molhado, estábulo ou remédio). É um vinho enorme!!!

Coincidentemente, ou não, é produzido em vinhas plantadas desde 1930, próximas das aldeias do Vale Bekaa (Aana e Kefraya), do Monte Ararate e da fronteira com o Irão, com a Turquia e com a Armênia ... onde Noé supostamente cultivou a primeira vinha.

Até para o ano amigos e cuidado com o que levam no vosso barco ;)