Festival do vinho do Douro Superior 2022 | O indizível, o inexprimível e o intraduzível
"A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu carácter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado." Theodor Adorno
Os seres humanos dedicam-se à arte há dezenas de milhares de anos (e muitas tribos continuam a fazê-lo de modo similar aos desses nossos antepassados). Algumas das obras de arte mais famosas são do Paleolítico Superior, criadas há 40 000 - 10 000 anos. Entre essas expressões artísticas surgem as famosas pinturas de Vila Nova de Foz Côa ou a caverna de Altamira em Espanha. Mas, seja aquém ou além fronteiras, porque é que esses hominídeos tiveram a necessidade de pintar grutas ou desenhar na pedra?
Apesar dos inúmeros estudos científicos dedicados ao assunto, e como muitas vezes acontece em ciência, ainda não se chegou a um consenso (pese embora quase todos terem a sua teoria). Uma das primeiras explicações para a arte rupestre é também a mais abnegada: a da “arte pela arte”. Como o próprio nome deixa transparecer, a ideia é a de que nossos ancestrais só produziam arte apenas porque estavam entediados ou porque acharam alguma cena bonita e que, por isso, merecia ser retratada. Não havia nenhum objectivo concreto por trás disso, seria o equivalente pré-histórico de um sudoku.
Desde os finais do séc. XIX essa teoria foi perdendo muitos defensores, dada a constatação, mais ou menos óbvia, da quantidade de esforço, dedicação e tempo que algumas das obras de arte requeriam. Os Picasso do Paleolítico Superior tiveram de criar andaimes para alcançar as rochas mais altas, tiverem de se aventurar em grutas profundas, escuras e perigosas (o que levou à invenção da primeira lamparina) e tiveram de procurar, por vezes extenuantemente, materiais que lhes permitissem pintar ou desenhar. Tudo isto apenas para passar o tempo? Estranho...
Como vem sendo comum em arqueologia e em relação a quase toda a actividade humana, surgiu também a teoria relacionada com os rituais. Assim, alguns antropólogos sugeriram que essas pinturas teriam uma natureza religiosa ou mitológica, semelhante aos bonitos vitrais que hoje em dia encontramos nas nossas igrejas. Para sermos justos, existem algumas evidências que dão um bom sustento a essa hipótese. Por exemplo, muitas cavernas e pedras estavam localizadas em locais longe das áreas onde os nossos antepassados habitavam e tinham uma orientação preferencial, tal como acontece com os locais sagrados .
Esta ideia da arte rupestre estar relacionada com a religião evoluiu depois para a “hipótese do xamanismo”, que postulava que a arte rupestre seria o resultado de actividades místicas de uma tribo e estaria relacionada com uma espécie de viagem espiritual potenciada por produtos alucinogénios. Alguns grupos de investigação provaram que muitas das coisas estranhas que as pessoas "vêem" após tomarem drogas alucinogénias (os chamados fenómenos entópticos) exibiam uma semelhança surpreendente com as imagens registadas na arte rupestre.
Durante um par de décadas esta parecia ser a resposta para a questão com que iniciei esta publicação, no entanto, outros investigadores repararam que de todos os fenómenos entópticos documentados devido ao uso de alucinogénios, apenas uma pequena proporção era representada na arte rupestre. Se algumas pinturas eram o resultado do uso de drogas, porque é que as outras "imagens entópticas" não aparecem também representadas? Além disso, as drogas utilizadas nos testes dos investigadores adeptos da "teoria das drogas" foram sintetizadas em laboratório e seria altamente improvável que os nossos antepassados encontrassem algum correspondente natural.
Surgiram também outras teorias como a avançada por Bednarik em 2008 que relacionava a arte rupestre com rituais de passagem à idade adulta. Tal teoria baseou-se no facto de que muitas das pegadas encontradas perto da arte rupestre tinham sido deixadas por crianças e também na constatação que alguns utensílios usados nas pinturas serem demasiado pequenos para terem sido manuseadas por um adulto. Mas como vos disse, esta tese não foi muito aceite pelos pares...
Assim, alguns historiadores encontraram uma razão bem mais prática para as obras de arte do Paleolítico Superior. As mudanças climáticas e as técnicas de caça mais eficientes, entretanto desenvolvidas pelos humanos, levaram a que muitas das espécies pudessem desaparecer de uma determinada região por um longo período.
Neste sentido, a arte rupestre poderia ser uma tentativa de manter um registo das espécies vistas antes dessa ausência, preservando o conhecimento das mesmas para quando elas regressassem (facilitando a sua identificação e escolha da melhor técnica de caça). A sustentar esta tese está o facto de que muitas imagens da arte rupestre mostrarem pés torcidos (para tornar bem claro quais as pegadas que cada animal deixava) e animais raros (e não vistos por toda a comunidade) como os mamutes. Este debate manteve-se até hoje, com novos livros e artigos publicados que vão refutando os argumentos dos aceites anteriormente.
Pessoalmente, e numa visão apenas de interessado, acredito que nunca se chegará à resposta definitiva uma vez que ... cada caso é um caso. Existem milhares de exemplos de arte rupestre espalhados pelo mundo, que foram criados ao longo de dezenas de milhares de anos. Provavelmente não havia apenas uma única razão para fazer arte e que abrangesse esse enorme espaço de tempo e espaço. Nos dias de hoje, acontece algo parecido, a motivação para a arte difere de artista para artista.
Todas essas hipóteses são provavelmente verdadeiras até certo ponto. Talvez a caverna de Altamira fosse ritualistica e talvez uma pedra de Vila Nova de Foz Côa fosse um "guia comunitário", mas o que é certo, é que a maior parte destas expressões artísticas não eram apenas rabiscos de sudoku, e que havia um motivo mais estrutural por detrás da sua concepção.
Independentemente desta explicação estar ou não completa, a arte rupestre assumiu-se como um intrigante, belo, e fascinante elo com nossa herança ancestral, que terá surgido, através de um antepassado nosso, africano, que viveu há mais de 70 000 anos. Se a invenção da arte pode ser atribuída a uma única pessoa é a ele, um "avô" anónimo que tivemos na Cidade do Cabo, na África do Sul, e que riscou algumas linhas num pedaço de pedra vermelha na Caverna de Blombos e que se acredita ser a obra de arte mais antiga do mundo.
Podem encontrar uma fotografia dessa pedra num artigo publicado em 2018 na prestigiada revista Nature. Mas, será que podemos/devemos chamar àquela pequena pedra vermelha ... arte? A definição de arte é aberta, subjectiva, discutível e controversa. Ao longo da história da arte, os próprios artistas têm empurrado os limites de cada definição, para um lado e para outro, desafiado os nossos preconceitos.
Como esse conceito de arte tem mudado ao longo dos séculos, o seu propósito foi definido como o modo de representar a realidade, de comunicar emoções ou ideias, de criar um sentido estético, de explorar a natureza da percepção, de explorar elementos formais, ou de simplesmente fazer algo que não seja "apenas" para suprimir as nossas necessidades básicas.
Assim, o papel da arte tem vindo a alterar-se ao longo do tempo, adquirindo umas vezes uma componente estética e outras uma função sócio-educativa. Não há acordo entre filósofos, historiadores e artistas e, assim, escolhemos a definição que mais nos convém. ;) Curiosamente, e como nos mostra este artigo, a maioria das definições que englobam a palavra arte, englobam também a palavra ... vinho. Confessem que por esta não estavam à espera!!! :P
Esta curiosidade é ainda mais surpreendente quando percebemos que, por exemplo no Vale do Côa a arte rupestre (22 000 a.C. –10 000 a.C.) nunca coabitou com o vinho (que terá surgido há oito mil anos). A ideia por detrás desta dicotomia vinho-arte faz-nos olhar para o vinho de um outro modo, com a lente de como ele nos afecta emocionalmente.
Tal como a arte, o vinho pode evocar emoções, despertar a curiosidade e acender paixões. Pode até proporcionar uma experiência subjectiva que que nos leva a criar um vínculo com ele. Analisando bem mais de perto estes dois, vinho e arte, podemos até perceber como os elementos fundamentais de ambos se relacionam.
Por exemplo, neste último estudo cientifico que vos falei, chegou-se à conclusão que o vinho e a arte passeiam as mesmas áreas cognitivas do nosso cérebro: existe um papel inter-relacionado de ambas as respostas sensoriais, emocionais e cognitivas; existe uma necessidade de aprendizagem similar de modo a que a percepção do vinho/da arte seja mais rica; e existem, quer no vinho, quer na arte, as questões de gosto pessoal. O que um gosta, o outro pode achar horrível.
Por último, quer o vinho, quer a arte, levam a uma percepção bastante parecida daquilo o que é verdadeiramente belo. Se isto é assim, e temos que acreditar no que a Ciência nos diz, não existe melhor local para avaliar esta dicotomia que Vila Nova de Foz Côa, especialmente pela altura do Festival do Vinho do Douro Superior!!! ;)
Este festival que já vai na sua 9ª edição, organizado pela Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa com a produção da revista ‘Grandes Escolhas’, tem como objectivo consolidar a sub-região do Douro Superior, os seus produtores e os seus vinhos como expoentes da qualidade da feira do vinho em Portugal.
No âmbito do festival, que teve este ano mais de 80 expositores, voltaram a realizar-se um conjunto de iniciativas que enriqueceram o evento. Foi o caso do prestigiado ‘Concurso de Vinhos do Douro Superior’, onde um júri diversificado composto por 33 jornalistas, bloggers especializados (alguns deles espectaculares como eu próprio ;)), profissionais da restauração, garrafeiras, e distribuição avaliaram cerca de centena e meia de vinhos, entre brancos, tintos e vinhos do Porto, numa prova que surpreendeu pelo grande nível dos vinhos apresentados.
Os grandes vencedores foram o Quinta da Extrema Edição II, de Colinas do Douro Sociedade Agrícola, o Quinta do Vesúvio 2019, da Symington Family Estates e o Burmester Tawny 20 anos, da Sogevinus Fine Wines, nas categorias de vinhos brancos, vinhos tintos e vinhos do Porto, respetivamente.
Várias outras iniciativas tiveram o condão de atrair os mais de 6 000 visitantes, nomeadamente as provas comentadas por especialistas, o colóquio sobre “As alterações climáticas e os desafios vitícolas do Douro Superior”, e a mostra/prova de produtos (vinhos, azeites, gastronomia) da feira, que fizeram deste festival uma alavanca para o desenvolvimento da economia local e que abrange os concelhos de Vila Nova de Foz Côa, Carrazeda de Ansiães, Figueira de Castelo Rodrigo, Freixo de Espada à Cinta, Mêda, São João da Pesqueira, Torre de Moncorvo e Vila Flor.
Dos vinhos em prova na Feira, nos brancos destaco a tangerina, acácia-lima, notas fumadas, baunilha e acidez do Terras do Grifo Grande Reserva 2017 (25.00 €, 90 pts.); e a flor de laranjeira, mineralidade (xisto molhado) e acidez mordaz do Dona Berta Curtimenta Reserva 2020 (18.00 €, 89 pts.). Nos tintos chamou-me a atenção a esteva, a framboesa e a elegância ecléctica do Quinta do Monte Xisto 2019 (60.00 €, 94 pts.); as notas florais, frutos silvestres, equilíbrio e complexidade do Dona Graça Avô Escrivão Grande Reserva 2017 (45.00 €, 92 pts.); os frutos silvestres, violetas, cacau, café e acidez aguerrida do Quinta dos Romanos Grande Reserva 2011(40.00 €, 92 pts.); e as notas balsâmicas, frutos silvestres, pimenta preta e finesse do Cisne 2015 (30.00 €, 91 pts.).
Ainda nos tintos, os meus favoritos foram o Quinta do Vale Meão 2019 (125.00 €, 97 pts.) com as suas notas balsâmicas deliciosas, esteva, amoras, equilíbrio, complexidade e acidez; e o Quinta do Vesúvio 2019 (55.00 €, 95 pts.) carregado de ameixa preta, esteva, bergamota, caixa de tabaco, densidade, estrutura e intensidade. Nos Porto, o Quinta do Vale Meão Vintage 2019 (55.00 €, 96 pts.) está cheio de fruta silvestre (a fazer lembrar o lagar em dia de vindima), taninos firmes, acidez irreverente e uma enorme estrutura; por sua vez o Quinta dos Canais Vintage 2010 (40.00 €, 93+ pts.) estava super pronto a beber com uva passa, couro, toffee, chocolate preto e um final super longo. Não posso deixar de destacar também a classe do Quinta da Cuca Rosé Reserva Touriga Nacional 2020. A fruta, a mineralidade, a frescura e a untuosidade super balanceadas tornam-no num dos melhores rosés que provei, só é pena ainda não estar no mercado, voltamos a falar dele quando isso acontecer!!!
O programa destinado à imprensa contemplou ainda a visita a 4 produtores da região. Começamos pelos vinhos MÓOS que nascem na aldeia homónima de Mós, Vila Nova de Foz Côa, perto das margens do Douro num contexto artesanal e familiar. Estes vinhos “vindimados à mão pela família” (pode ler-se nos rótulos das garrafas) são elaborados a partir das uvas da propriedade, situada entre os 300 metros e 500 metros de altitude. Luís Polido é o seu produtor e a enologia é da responsabilidade do reconhecido Luís Leocádio.
Gostei muito do Móos Vinha Sambado Grande Reserva Branco 2020 (30.00 €, 90 pts.) devido às notas cítricas e florais com um toque mineral, baunilha, paladar crocante e estruturado, elegância e complexidade; e do Móos Vinha Sambado Grande Reserva Tinto 2019 (35.00 €, 90 pts.) com fruta do bosque, cedro, noz-moscada, sous-bois, elegância e equilíbrio. Ambos com imensa pureza e sentido de pertença.
Seguiu-se a Gerações de Xisto, produtor que emergiu da fusão de dois projectos, Chousas Nostras e Vales Dona Amélia, criados pela forte vontade de jovens descendentes de duas famílias Transmontanas (Família Sousa Grandão e Família Lobão), apaixonados pela sua terra e apostados em preservar o património rural familiar e as tradições herdadas a recuar gerações, tirando partido de olivais centenários e vinhas de venerada idade agora convertidos em espaços de ensaio na busca de novos sabores e aromas.
Destes, gostava de vos falar do Gerações de Xisto Vinho Branco 2020 (15.00 €, 87 pts.) com acácia-lima, anis, esteva e acidez equilibrada; e do Gerações de Xisto Vales D. Amélia Tinto 2018 (23.00 €, 89 pts.) com pimenta preta, sous-bois, amoras, leve tosta, austeridade e secura. Posteriormente e quanto a mim, o melhor momento destes três dias: a visita à Quinta de Ervamoira da Ramos Pinto. Com uma área total de 223 hectares que oscilam entre os 110 e os 340 metros de altitude, esta Quinta utiliza em exclusivo o método de plantação vertical (plantação da vinha sem recurso a terraços), por talhões, com castas autóctones introduzidas pela Ramos Pinto nos anos 80.
O solo da Quinta de Ervamoira faz parte do complexo de xisto-grauváquico ante-Ordovícico e, neste contexto geológico homogéneo, a singularidade da Quinta de Ervamoira assenta na diversidade de exposições do anfiteatro onde está implantada. A história da quinta contada on site pelo Jorge Rosas foi um dos melhores momentos que o blogue me proporcionou. Relativamente aos vinhos e apesar de todos serem de qualidade elevada, vou destacar dois, um deles "de outro planeta". Começo por esse extraterrestre e o melhor vinho provado por estes dias, o Quinta de Ervamoira Tinto 2019 (100.00 €, 97 pts.) com uns apontamentos balsâmicos gulosos enobrecidos pelos frutos silvestres muito puros, pelas notas florais (violetas), caixa de tabaco, alguma pedregosidade e cachimbo.
Na boca é super elegante, equilibrado, harmonioso, fresco e longo. Uma maravilha!!! Por sua vez, o Quinta de Ervamoira Vintage 2020 (75.00 €, 94 pts.) apesar de ainda estar um pouco tímido, com paciência já nos mostrava frutos silvestres, lagar em dia de vindima, pimenta preta, chocolate e menta. No boca é denso, complexo, estruturado, fresco e ligeiramente austero. No último dia e após uma visita ao renovado Museu do Coa, tivemos o prazer de visitar a Quinta da Saudade, situada na Muxagata, concelho de Vila Nova de Foz Côa, que foi adquirida em 2008 pelo enólogo Carlos Magalhães (alias Carloto) e cinco amigos que tinham uma paixão em comum: o vinho, as vinhas em altitude e o Douro. Lá nascem os vinhos Palato do Côa, frescos e equilibrados.
Gostei particularmente do espumante que lá provei e a ser lançado nos próximos meses (e do qual ainda não se pode falar muito ;)); da descomplicação, mineralidade, framboesas e acidez gastronómica do Palato do Coa Rosé 2021 (9.00 €, 85 pts.); e das amoras, alcaçuz, esteva, caixa de tabaco, frescura, intensidade e persistência do Palato do Côa Reserva Tinto 2018 (20.50 €, 89 pts.).
Esta foi a minha visão deste festival e destes vinhos, mas tal como acontece na avaliação da grandeza de uma obra de arte, a beleza da apreciação de vinhos reside fundamentalmente no seu carácter ambíguo (como é óbvio, dentro de certos limites). Para vocês a experiência poderia ser completamente diferente, mas provavelmente concordaríamos no nível de excelência que se pratica pelo Douro Superior. Como defendia Leonardo Da Vinci (com concordância plena do Pedro Da Vinha :P), a arte diz o indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível. O mesmo sucede com os vinhos, e por isso, melhor que todo este (longo) texto, para perceberem, verdadeiramente, o que faz um grande vinho, têm mesmo de os provar ... repetidamente, até essa obra de arte se tornar clara para o vosso palato!!!