Jantar Casa do Vale | Um aroma inesquecível da infância
"Falar de comida é quase sempre falar de saudade, é sentir o nostálgico afago de uma lembrança, próxima ou distante, ida mas vivida. Comida também cabe no futuro, como esperança de um bom momento, comida tem sabor de tempo. Há algo do tempo que se perdeu no tempo em que o tempo ainda tinha tempo!!! Na nossa infância haviam vários tempos de medir o tempo. As frutas tinham o seu tempo; tempo da manga, tempo da tangerina, do caju e do abacaxi. Foi tempo de subir ao abacateiro e imaginar o mundo a passar por ali. Tempo do cheiro a lenha crepitando no fogão na casa da minha avó enquanto a alquimia amorosa de pratos simples como o arroz e feijão estreitavam o espaço entre o Céu e a Terra. Nesse longínquo tempo de criança, o amor tinha cheiro de comida" Sabores Inconscientes, José Carlos Garcia
É engraçado como por vezes a comida é capaz de nos fazer reviver a infância, como um simples cheiro torna possível viajar através de nós mesmos, através de experiências já vividas e revisitarmos a criança, o adolescente e o homem...
Relembrar um cheiro é invocar histórias. Memórias de um tempo de inocência, felicidade, fantasias, brincadeiras e família. É na infância que se constroem valores, é também na infância que imortalizamos sabores… E para cada uma dessas histórias existem cheiros associados. Desta forma, dentro de cada um, o arroz pode virar ternura, a vitela relembrar fartura, o frango de churrasco ser sinónimo de dia de passeio e pizza tempos de devaneio.
A psicologia denomina estas memórias de “Fragrant Flashbacks”, e são o resultado de uma relação muito bonita entre três dimensões: a memória, o olfacto e a nossa infância. Uma das coisas mais desconfortantes de nos tornarmos adultos é que essas três dimensões cada vez se encontram menos no nosso palato. Mas por vezes, quando menos esperamos, somos surpreendidos. Uma dessas vezes foi no jantar Enogastronómico promovido pela Casa do Vale que decorreu no restaurante Salsa e Loureiro, do Hotel Porto Palácio, em parceria com a Casa de São Matias.
O espaço do jantar foi pensado com muito bom gosto, conforto e funcionalidade, dava logo para perceber que algo bom, algo muito bom estava para acontecer :-P
Depois de uns "Finger Food" para reconfortar o estômago, era chegada a hora do banquete. Este jantar iria servir ainda para "apresentar" o novo conceito que o chef Álvaro Costa quer construir no Hotel Porto Palácio: inovação, requinte e criatividade pincelados com o sentido da tradição. Da conversa com o Álvaro percebi que é um apaixonado por vinhos, enoturismo e comida, boa comida... As coisas só poderiam correr bem :-P Com a postura que manteve na cozinha, na exigência com que construiu a sua equipa e no cuidado com que preparou todos os pratos percebe-se o que o chef pretende com este seu ingresso no Hotel Porto Palácio, a excelência.
A primeira iguaria a chegar à mesa foi presunto, azevia, fios de ovos e compota de frutos vermelhos com Porto Casa do Vale regado por um São Matias DOC Branco 2015. Foi um prato arriscado mas que acabou por resultar muito bem, com o salgado do presunto e a voluptuosidade da azevia a serem enobrecidos pela finesse dos fios de ovos e pelas memórias da compota. Produzida a partir de morangos, framboesa e mirtilos da máxima qualidade, limão, canela e vinho do Porto esta compota tem um terroir que me é muito caro, não me fez relembrar os tempos de criança, mas reforçar um grande amor de adulto ... o Douro... De outro rio, o Dão, chegou o vinho que acompanhou este prato. Muito gastronómico, fresco, mineral e com bastante fruta branca. Estava dado o mote para o que restava da noite :-P
O mesmo vinho acompanhou mais tarde o creme de shitakes frescos Casa do Vale e crocante de alheira, farofia de pó de salicornia Casa do Vale.
Mal coloquei a primeira colher na boca pensei: "Que aroma salgado especial é este?" Era o pó de salicornia Casa do Vale, simplesmente delicioso, sabia a mar e dançava no palato com o suave, delicado, untuoso e aveludado creme de shitakes frescos. Um jogo sensorial do mais rico que encontrei até hoje, genial!!! Seria difícil fazer melhor, mas por vezes...
Parabéns (e obrigado) Jorge Cardoso por produzir produtos com tamanha qualidade e complexidade, não me surpreendem os incessantes pedidos de encomendas vindos da China, Hong Kong, Filipinas, EUA... Quando se é bom e se produz com o coração, não exportamos apenas comida, exportamos uma parte de nós, que viverá com saudade, como memórias de um bom momento.
António Montenegro da Casa São Matias escolheu os morangos, mirtilos e framboesas do Tinto 2013 para acompanhar um delicioso e rico dorso de bacalhau em caldo de grão e enchidos com vinagrete de shitake Casa do Vale. Gostei da delicadeza do bacalhau, gostei muito do aroma da feijoada e adorei a complexidade do vinagrete. Parece feito com pinças, tudo está com conta, peso e medida, nada sobressai e tudo faz sentido em conjunto. Muito, mas mesmo muito bom. Após conversa com o Jorge percebi que este vinagrete é um dos “Sabor do Ano 2016”, podera...
Seguiu-se o Whelington de porco ibérico, cebola caramelizada com tamarilho Casa do Vale, esmagada de batata e castanha com molho bordalês acompanhado por um São Matias Reserva Tinto 2013 (edição limitada). Apesar do porco estar um pouco overcooked, esta foi a minha harmonização favorita. Gostei da elegância e estrutura do vinho, todo ele é Dão. Muito fresco, com pimenta, violetas e fruta vermelha. Complexo e harmonioso, ia-se dar bem com o vinagrete :-P A combinação magistral da manteiga com o vinho no molho bordalês só está ao alcance de chefs com alma de alquimista, o chef Álvaro Costa tem-na. Mas para mim, a cebola caramelizada com tamarilho "abafou" tudo o resto. A frescura do tamarilho reavivou a acidez perdida da cebola, enriqueceu a doçura da caramelização e perfumou-me a alma. Os sentimentos também têm cheiro, e naquele momento, a minha infância cheirava a cebola caramelizada.
Dei por mim aninhado ao fogão da casa dos meus pais. O menino, curioso e encantado com o borbulhar da cebola no tacho. Lembrei-me de correr em plena alegria para a horta do meu avô para buscar as cebolas que a minha mãe temperaria com limão e carinho. Nostalgia é a alegria vestida de saudade, sorriso da alma renitente. Memória incessante, que por vezes, visita o presente. Para mim a Casa do Vale passou a ser isso ... nostalgia... Não estava à espera, mas essa memória de cebola que se perdeu no tempo em que o tempo ainda tinha tempo, reconfortou-me no presente...
O jantar estava quase no fim, mas ainda havia tempo para um financier de castanha e queijo da serra e mel de laranja Casa do Vale. Esta sobremesa foi mais um duelo muito nobre, engraçado e saboroso entre o doce e o salgado. Este belo duelo ganhou ainda mais expressão com a acácia, a lima, a madeira, a mineralidade e a acidez fantástica do Encruzado Reserva 2015. Quem diria que um Encruzado poderia acompanhar uma sobremesa!!!???
Mas para mim esta noite, este jantar, esta memória nostálgica teve tudo a ver com outro prato...
Teve a ver com salivar à lembrança da cebola caramelizada que inundava o restaurante com um aroma inesquecível da infância...
Um aroma de quero mais...
Um aroma de alegria.
Um aroma de menino, de domingo e de família.
Obrigado Casa do Vale pelo convite, mas também, e sobretudo, por me relembrarem que nesse longínquo tempo de criança, o amor tinha cheiro de comida...