Le Garage restaurante | Anadiplose: Ato III, Cena I, sempre!!!
"A única linha errada em tudo o que Shakespeare escreveu é quando ele diz «segurando um espelho virado para a natureza». O correcto seria segurar uma lupa em direcção à mesma natureza. Como actor, deves aumentar a realidade, mas apenas o suficiente para que o teu público se possa identificar com a situação. Se o actor fosse um espelho, não teríamos arte." Montgomery Clift
Um dos artigos que mais me deu gozo escrever, na minha (já não tão) jovem carreira de cientista, foi publicado no ano de 2019, em plena pandemia. De entre a centena de artigos (e alguns livros) que já publiquei, esse não foi o que teve mais impacto, nem sequer aquele que foi publicado na revista mais (re)conhecida, no entanto, foi aquele que para falar de Física recorri a ... William Shakespeare.
Comecei esse artigo a esmiuçar uma frase. Aquela que, muito provavelmente, mais pessoas associam a Shakespeare, mesmo que nunca o tenham lido ou visto. «Ser ou não ser: eis a questão», é a frase de abertura de um solilóquio do protagonista Hamlet na chamada “cena do convento” da peça mundialmente aclamada "Hamlet, Príncipe da Dinamarca". Estamos no Ato III, Cena I.
Nessa cena, o príncipe Hamlet pensa sobre a vida, sobre a morte, e sobre a vida após a morte. De modo mais frio e concreto, Hamlet questiona-se se não seria preferível cometer suicídio de modo a acabar com o seu sofrimento, acto esse que deixaria para trás a dor e a agonia associadas a um mau momento. Mas será que a mensagem associada a esta frase, a esta cena, tem de ser assim, forçosamente sombria? Ou este melancolismo acinzentado pode conter alguma mensagem coloridamente positiva?
Para respondermos de modo mais assertivo a essa questão, precisamos de conhecer um pouco mais esta obra, sobretudo o porquê de William Shakespeare a ter escrito. Voltando à cena anterior, embora Hamlet acredite que está sozinho enquanto equaciona a sua vida, o rei Cláudio (seu tio) e Polônio (o conselheiro do rei) estão escondidos atrás de um espelho, espionando-o.
Curiosamente, Hamlet dirige o famoso "ser ou não ser" para toda a humanidade e não apenas, fechado, para si mesmo. Será melhor suportar passivamente as dores da vida ou activamente acabar com ela, por meio de um suicídio? Hamlet, inicialmente argumenta que a morte seria a opção preferível: ele compara o acto de morrer à imersão num sono tranquilo.
No entanto, ele muda rapidamente de tom quando considera que ninguém sabe ao certo o que acontece após a morte, ou seja, se existe vida após a morte e se essa "vida" pode ser ainda pior do que aquela sem aspas. Essa percepção é o que, em última análise, dá a Hamlet (e a todos os outros na mesma situação) o "travão" quando se trata de agir (ou seja, de cometer suicídio).
Nesse sentido, e para Shakespeare, nós, os humanos, temos tanto medo do que vem depois da morte e da possibilidade de que esse desconhecido possa ser ainda mais miserável do que a própria vida que, todos nós (Hamlet incluído), nos acobardamos. Shakespeare escreveu mais de 30 peças, incluindo esta, mas nenhuma é tão melancólica, inquietante e vingativa quanto "Hamlet". De onde terá surgido a inspiração para a escrever?
Alguns especialistas afirmam que o personagem de Hamlet recebeu o nome do único filho de Shakespeare, Hamnet, que morreu aos 11 anos (em 1601, apenas cinco anos antes de Shakespeare escrever Hamlet). Se for esse o caso, o solilóquio "Ser ou não ser", parece ser uma espécie de exorcismo dos lamentos e mágoas de um pai completamente destroçado.
Outros, acreditam que Shakespeare foi inspirado a explorar temas mais tristes devido à morte de seu próprio pai em 1601 (o mesmo ano em que escreveu "Hamlet"). Essa teoria parece credível, uma vez que muitas das peças que Shakespeare escreveu depois como "Macbeth" e "Otelo", adoptaram temas igualmente sombrios.
Existem outros ainda que sugerem que Shakespeare foi inspirado a escrever "Hamlet" pelas tensões que surgiram durante a Reforma Inglesa, acontecimento que levantou questões sobre se seriam os católicos ou os protestantes aqueles que tinham crenças mais "legítimas" (curiosamente, Shakespeare entrelaça ambas as religiões na peça).
Por último, existem aqueles (nos quais eu, humildemente, me incluo) que acham que todo este melancolismo, é na verdade uma metáfora para a ... felicidade. Na peça que hoje esmiuçamos, William Shakespeare explora a ideia de como a felicidade pode estar relacionada com o atingir dos nossos objectivos, podendo (ou não) essa realização ter consequências negativas. A sequência de acontecimentos na obra, empurram Hamlet para uma situação em que deve matar o seu tio de modo a poder vingar o seu pai (não interessa agora explicar o porquê, fica para uma outra altura ;)).
Na busca desse objectivo, Hamlet sacrifica a sua liberdade, o seu amor e o seu bem-estar, ficando emocionalmente vulnerável. No limite, é esse atormentado Hamlet que dá felicidade/alegria a quem assiste à peça. Assim, a morte, apesar de ser o tema predominante, actua apenas como uma estrada através da qual, todos nós, personagens reais, como membros da plateia, obtemos prazer.
Embora de modo totalmente inesperado, quase dissimulado, Shakespeare mostra-nos que é possível encontrar e alcançar a felicidade em diversos contextos e que esses contextos não têm de ser, obrigatoriamente, favoráveis. A capacidade de Shakespeare de agitar essas emoções aparentemente justapostas é o que torna esta peça apaixonante e atemporal.
Deste modo, "ser" é uma metáfora para a luta pela felicidade, por aquilo em que acreditamos, pela nossa realização, pela nossa identidade: simboliza a excelência; e o "não ser" um espelho literário do mais fácil, do trivial, do resignado, do menos esforçado, do "deixa andar": simboliza o medíocre. Ser ou não sermos o máximo de nós, independentemente do contexto, eis a verdadeira questão.
Se fizermos parte deste último grupo de apreciadores de Shakespeare, percebemos que o Ato III, Cena I não é apenas algo que foi criado em 1601 para ser repetido ao longo dos diferentes séculos em diversas salas de teatro, é algo que acontece em cada um de nós, quase todos os dias, quando na realização de algo, colocamos na nossa balança de esforço o "excelente" e o "já está bom assim". Hoje falo-vos de um restaurante, cujo chefe responde sempre «ser!!!» a essa pergunta "solilóquiária".
O restaurante Le Garage em Santo Tirso (bem perto de Moreira de Cónegos, a terra onde passei a minha infância e boa parte da adolescência) apresenta-se como um espaço requintado e elegante, onde a contemporaneidade se funde com a história que o restaurante, tão levemente, acarreta. A antiga garagem (com vista para a piscina), onde outrora habitaram alguns dos mais cobiçados carros clássicos, deu lugar a um espaço sofisticado onde podemos ser conduzidos até ao melhor da alta gastronomia com os ingredientes mais nobres e combinações únicas.
É contiguo a uma casa senhorial centenária, onde é possível dormir. Se poderem, combinem estas duas experiências (guesthouse e restaurante) pois não se vão arrepender!!! No restaurante, a promessa é a de nos fazer embarcar numa viagem gastronómica deliciosa através de várias sensações, sabores, texturas e cores vibrantes. Tudo isto, recorrendo a uma cozinha de autor, onde os ingredientes locais, frescos e de máxima qualidade servem de ponto de partida. Paradoxalmente, está inserido numa zona industrial, apressada, cinzenta.
Os portões verde azulados, os muros altos, as árvores e as flores ajudam a criar uma espécie de muralha sensorial, que nos catapulta para o requinte, para a graciosidade, para o detalhe, isolando-nos da azáfama do exterior. É quase como se entrássemos numa bola de sabão onde o tempo para. Essa antiga garagem, em forma curva e complementada por um jardim dá um aspecto casual chic ao restaurante que lhe assenta muito bem.
A nossa experiência começou no bar do restaurante com a crocância, fumado e maresia do "Cocktail de camarão", com a acidez, untuosidade e subtileza do "Tártaro de robalo, mexilhão e alga", com a textura surpreendente e sabores concentrados da "Falsa trufa de alheira" e com a simplicidade suculenta do "Mini-hamburguer de vitela". Estas diferentes texturas, sabores complementares e uma acidez muito vincada, em conjunto, despertaram os sentidos para a obra de arte gastronómica que se seguiria.
O guloso "Frango frito, feijão verde, pleurotus e pinhão" exibia uma decadência carnal arrebatadora. Descomplicado nos ingredientes, ainda assim, complexo, equilibrado e carregado de sabor. É daqueles que no final apetece lamber dos dedos. A "Vieira e Tapioca" só não foi a melhor de sempre, porque há uma parecida na Casa de Chá da Boa Nova.
É finalizada na mesa, com pompa e circunstância, como se de uma obra de arte se tratasse. Emana uma voluptuosidade elegante e um conjunto de texturas que quando são conjugadas com uma confecção perfeita da vieira criam algo bom, algo verdadeiramente bom!!!
Provei o "Carabineiro com arroz selvagem", pela primeira vez e servido de uma outra forma já em 2015. Gosto muito mais desta nova "roupagem", tanto que entretanto, já tive de ir de novo ao Le Garage para o voltar a apreciar. É um prato encantador, com sabores e aromas fumados agradáveis, revelando-se o suco aprisionado na cabeça do carabineiro uma magistral combinação para o arroz.
Materializa-se numa espécie de risotto do mar, muito aveludado, super elegante e incrivelmente denso. Possui um perfil de sabor único, limpo e distinto que realça a qualidade do produto. Não sei o que me aguarda nas próximas visitas do blogue, mas este, vai ser, muito provavelmente, o prato do ano.
Seguiu-se o "Papelote de garoupa" que colocou em sentido todos os nossos sentidos. Visualmente, desperta a curiosidade, quase teatralmente. Quando aberto liberta um conjunto de aromas rico, encantador e denso, similar ao que acontece quando entramos numa cozinha em funcionamento. Mas é no palato que demonstra toda a sua classe. A confecção cuidada permitiu que os diferentes ingredientes cozinhassem nos seus próprios sucos e vapores, originando uma garoupa rica, húmida e macia.
Cada legume acrescentava uma nova camada de sabor e textura. Este papelote não estava "só" incrivelmente confeccionado, mas as diferentes camadas de sabor funcionavam fenomenalmente bem umas com as outras. Uma coisa é ser artista com um ingrediente de luxo como o carabineiro, outra, completamente distinta (e só ao alcance de alguns) é a habilidade necessária para tornar a cebola, a cenoura e a courgette ... genuinamente emocionantes.
O "Bacalhau com todos", desconstruído, constrói-se, vestindo fraque e gravata num prato que organolepticamente respeita a tradição da cozinha genuinamente portuguesa. É intenso, rico, elegante, saboroso, equilibrado e voluptuoso. Mas é sobretudo genuíno, generoso e com memória. Uma delícia!!!
Num estilo completamente diferente, o "Robalo, lingueirão e cevadinha de bivalves" agrada tanto à vista quanto ao palato. Nela, a tradicional concha do lingueirão foi trocada por uma comestível (temos apenas alguns segundos para desfrutar dela em todo o seu esplendor). Em conjunto, todos os elementos, provocam um mergulho num mar gastronómico através de um robalo espectacular. É um prato muito complexo, na apresentação, nas texturas, nos sabores e nos aromas, estando todos estes vértices unidos pelo mar.
Já na carne, o "Leitão e batata galette" exibia uma camada superficial bastante crocante, enquanto que no interior era aprisionado um suco delicioso carregado de voluptuosidade e luxúria. A salada de frutos vermelhos acrescentava cor, acidez e uma ligeira doçura que equilibrava todo o prato. Apenas senti a falta de um pouco mais de pimenta no molho, no entanto o sommelier Zé Luís Silva escolheu (superiormente) um Lagar de Baixo Baga Bairrada 2019 que acabou por completar o leitão.
Acto seguinte: "Vitela, tupinambor e foie gras". A doçura e acidez da redução, os aromas fartos a frutos secos do tupinambor e a exuberância gulosa do foie foram excelentes anfitriões para a consistência firme mas macia, suculência e incrível sabor da vitela.
Na "Pá de Cordeiro, couscous e beringela", a carne revelou-se saborosa, carregada de aromas, sucos e elegância. A beringela contribuía com uma ligeira adstringência adocicada, os couscous davam largura ao prato e o molho ligou todo o conjunto, elevando-o.
Depois de um corta sabores em forma de uma piña colada gourmet, contemplamos "Os chocolates" com brownie de chocolate, mousse de chocolate de leite, crocante de avelã, mousse de chocolate branco e gelado de chocolate branco. Com diversos tipos, texturas e intensidades de chocolate, esta foi uma sobremesa que se demonstrou camaleónica e bastante heterogénea na prova, pois a cada momento iam surgindo diversos sabores, contrastes, intensidades e harmonias. É um autêntico hino a este nobre e muito apreciado produto.
Em seguida, ficamos "À Volta dos Conventos": Pão de ló, sericaia e espuma do abade de Priscos com gelado de canela e "pau de canela" comestível. Nesta iguaria, o Chefe pegou em três clássicos da doçaria conventual portuguesa, harmonizando-nos nas suas diferenças , ligando-os através da canela.
Curiosamente, e respeitando o canône gastronómico português, cada uma das partes contribuía com aquilo que a diferenciava/identificava: a doçura decadente do abade (se bem que ali com uma textura mais ecléctica), os citrinos da sericaia e a tradição "simples" e gulosa do pão-de-ló. Não é fácil, combinar estes três monstros, tão distintos, de modo tão harmonioso, tão equilibrado, tão complexo e tão genuíno.
Destaque também para o serviço muito profissional, próximo e dedicado; e para a harmonização vínica irrepreensível. O Le Garage conta com a experiência de dois sommeliers (o Zé Luís e o Dmytro) que fazem "inveja" a muitos restaurantes já estrelados. Falta falar, talvez do mais importante, do Chefe, Rui Paula. Já por diversas vezes destaquei a excelência do que vai fazendo por todos os lugares por onde vai passando. Excelência essa assente no conhecimento, na destreza e na cozinha com memória e para as memórias. O que ele está a fazer no Le Garage só vem reforçar o que já achava dele: que é um predestinado.
Tal como um bom actor, procura aumentar a realidade, neste caso a da gastronomia tradicional lusitana, mas apenas o suficiente para que o seu público, nós que nos sentamos nas mesas dos seus restaurantes, nos possamos identificar com a mestria das suas obras, cada uma delas, adaptadas ao contexto onde se inserem, sem que em conjunto percam identidade. Umas semanas após a experiência que hoje vos relatei, voltei ao Le Garage, "à paisana", no âmbito de um outro evento. Para poder estar presente nessa a ocasião, o Chefe viajou, propositadamente, desde o Algarve (onde cozinhou num almoço) até ao norte do país. Cozinhou, corrigiu detalhes no serviço e ainda serviu à mesa, explicando os pratos.
Anadiplose é um recurso literário pouco comum, mas usado muitas vezes por Shakespeare. É detectável quando uma palavra ou frase é repetida um pouco mais à frente, servindo para nos dar uma noção clara da conexão entre essas duas frases, realidades ou ideias. Ao repetir alguns dos pratos mais aclamados da Casa de Chá da Boa Nova e ao exigir o máximo em cada momento à sua equipa, sei bem a noção clara que Rui Paula quer transmitir aos críticos gastronómicos que estão atrás do espelho. Que quer o brilho colorido de mais uma estrela, desta vez, ali, no meio de um melancólico e cinzento parque industrial.
A excelência é um acto que se cultiva diariamente, em qualquer local, contexto ou situação, nem que para tal, tenhamos de colocar o restaurante numa bola de sabão.