Noval Vintage Nacional 2019 e outros milagres | O mistério da estrada de Mendiz
"A franqueza é a coragem da verdade. É uma vitória constante sobre o medo. A partir do medo de nós mesmos. É um bem, por ser uma forma de autenticidade, de naturalidade, de caráter." Tristão de Ataíde
Depois de duas semanas ausente para trabalho (os finais de semestre nas universidades têm destas coisas) e para a preparação do baptizado do Gui (que ocorreu ontem) regresso às teclas do blogue (tenho mesmo muito que escrever ate final de Agosto senão alguns de vocês matam-me ;)), e logo com uma história que inclui o primeiro vinho "100 pontos" do ano!!!
Ao contrário do que o título deste texto possa sugerir, não vos vou falar da primeira narrativa de cariz policial da literatura portuguesa (O mistério da estrada de Sinta), e que marca a estreia literária de Eça de Queirós, em colaboração com o seu grande amigo Ramalho Ortigão. Antes sim, de um autor bem menos consensual e ... bem mais atual, Francisco Moita Flores, mais precisamente do seu romance policial "A fúria das vinhas". Já o li há uns anos e estava à espera do vinho certo para vos falar dele... :P
Este livro coloca-nos no epicentro da luta contra a filoxera, uma praga que, na segunda metade do século XIX, ia destruindo definitivamente as vinhas do Douro (na verdade, de toda a Europa). Folheando duas ou três páginas, viajamos até às vinhas da Régua e das aldeias adjacentes, onde quase toda a terra era dedicada exclusivamente à produção de vinho. Lá encontramos o Portugal de antigamente, mais rural, onde o presidente da câmara também é barbeiro e o médico faz horas extra como curandeiro.
Por lá, cruzámo-nos com D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha, herdeira da alma dos seus antepassados, corajosa e destemida, que declarou uma guerra sem tréguas à maldita praga enquanto protegia as gentes de toda uma região. Com ela surge o excêntrico Vespúcio Ortigão, bacharel em direito, muito culto, que cita frequentemente Teófilo Braga e Voltaire e que possui uma certa queda para a psicologia e para o combate ao crime.
Quando dá-mos conta e após uma noite de tempestade, uma rapariga adolescente aparece morta numa vinha longínqua. O culpado deste crime? A opinião parece ser unânime, um lobo ou qualquer outra fera faminta. Vespúcio questiona este julgamento supérfluo, pois são vários os detalhes que a ele lhe parecem indicadores de um assassinato.
É o conhecimento cientifico que o impede de se agarrar à confortável justificação do mistério nas tão comuns artes de bruxaria, que proliferavam nos tempos de então. Muito menos acredita nos ataques, tão estranhamente selectivos (sempre perpetrados em meninas adolescentes), pretensamente levados a cabo por animais. Algo de mais intrigante teria de estar por detrás daqueles crimes, e estava mesmo...
Enquanto o Vespúcio é embebido na resolução deste mistério, a Ferreirinha presencia outro crime, o das suas vinhas a serem destruídas pela temível praga. A população anda numa caça desalmada aos lobos e às bruxas enquanto se procuram afastar do diabo. As mortes de jovens adolescentes continuam a suceder-se a um ritmo preocupante e os campos ficam pintados de cinzento com a morte das vinhas. Ninguém quer ouvir as teorias cientificas de Vespúcio, apenas a velha Ferreirinha, amiga e alma bondosa que lhe pagou os estudos.
Até que Vespúcio, qual Sherlock Holmes duriense, percebe a raiz do problema e começa a delinear uma estratégia com vista à resolução dos dois crimes (os assassinatos das adolescentes e o assassinato das vinhas pelo famigerado escaralhevo) que, na realidade, não passam apenas de um. Não vos vou contar como acaba esta história apenas vos vou esmiuçar o modo como o problema da filoxera foi resolvido (se me costumam ler já devem conhecer esta parte).
O livro ensina-nos que com perseverança é possível vencermos as dificuldades e o medo, sobretudo o mais complicado, o medo de nós próprios, o medo de não sermos capazes, o medo de não arriscarmos ou o medo de não correspondermos às expectativas. Relativamente ao inseto que quase destruiu no nosso continente um bem que a todos nós é querido, o vinho, esse foi vencido com perseverança e com um porta-enxertos americano.
Surpreendentemente, a filoxera coexiste pacificamente com as videiras americanas e videiras europeias enxertadas em pés americanos. Esse "truque" garantiu a sobrevivência do vinho europeu como o conhecemos hoje, uma vez que a esmagadora maioria dos viticultores ainda o usa. No entanto, esta estratégia é na verdade um paliativo e não uma cura.
Felizmente podemos encontrar algumas exceções por esse mundo fora. Alguns viticultores, apesar da ameaça, voltaram a plantar mudas sem enxertos. A moda pegou e começaram a surgir relatos de que em algumas zonas a filoxera não tinha atacado. Aparece então a expressão «pé-franco», que é o nome que se dá às videiras com raízes próprias.
Os produtores que adotaram o pé-franco acreditam que este expressa melhor tanto o terroir como a própria uva, pois as videiras europeias não só eram (e ainda são) mais frágeis como ainda tinham (e ainda têm) raízes menos profundas, o que leva a cachos e bagos mais pequenos e a vinhos mais densos/robustos e complexos. Para além disso, há ainda o argumento mais subjectivo do porta enxertos não alterar as características organoléticas da uva.
Cá na minha modesta opinião, há espaço para todos, para o pé-franco e para o pé americano, desde que o pé, e o que está por cima dele, seja bem tratado... ;) Um excelente exemplo da convivência pacifica destes dois pés é a Quinta do Noval. A última vez que a visitei foi aquando da apresentação dos novos Vintage Noval, Passadouro e Romaneira. É sobre eles que vos vou falar hoje.
Começo pelo mais surpreendente, selvagem e indomado, o Quinta do Passadouro Vintage 2019 (60€, 94 pts.). Este é o primeiro Vintage produzido nesta quinta (que tem a particularidade de ter vinhas vizinhas das do Noval no Pinhão e no Roncão) vinificado pela Noval. De cor rubi quase opaca exibe no nariz aromas a amora, ameixa preta, cacau, pimenta, gengibre e um ligeiro mentolado. Na boca é vibrante, fresco, elegante, opulento e com os taninos ainda à espera de serem domados.
Já o exuberante Quinta da Romaneira Vintage 2019 (60€, 95 pts.) apresenta-se rubi arrouxado e com aromas já bastante diferentes dos que encontrei há uns meses: ameixa preta seca, mirtilos, violeta, flor de laranjeira, chocolate e canela. Na boca é firme, equilibrado, intenso, longo e exibe uma bela acidez crocante.
Por sua vez, o Quinta do Noval Vintage 2019 (90€, 96 pts.) traja uma cor rubi negra, profunda e intensa, e o nariz está preenchido com ameixa vermelha madura, amora, cereja preta, chocolate preto, hortelã e pimenta preta. Na boca todo ele é densidade, equilíbrio, elegância e complexidade. A acidez deste vinho é incrível!!!
Surge então a estrela do dia o Noval Nacional Vintage 2019 (1500€, 100 pts.). Ao contrário dos anteriores é produzido em algumas parcelas viradas a noroeste e exclusivamente com pé-franco. Neste ano de 2019 contribuíram para um vinho rubi opaco e com notas ainda muito discretas, quase escondidas, a ameixa preta seca, compota de frutos silvestres, esteva, noz-moscada, pimenta preta e gengibre. No palato exibe uma dicotomia muito engraçada entre poder/taninos raçudos/estrutura e elegância/finesse/equilíbrio. É muito complexo, penetrante, equilibrado, harmonioso, mas ainda muito tímido.
Tivemos ainda o prazer de revisitar alguns Vintage 2011, incluindo o enorme Noval Nacional Vintage 2011 (2500€), a atravessar a fase adolescente no nariz (e por isso não vou atribuir nota) mas com uma boca impressionante e que me fez recuar uns anos, cheia de tensão, personalidade, frescura e com uns taninos em constante erupção, desde 2013...
Estes são vinhos (sobretudo os vinificados pela Noval) que nos mostram que independentemente do tipo de pé, é possível criar uma espinha dorsal, uma marca, um ADN imutável, materializado em equilíbrio, harmonia, classe e elegância. Voltando à filoxera, ainda ninguém sabe muito bem porque é que algumas vinhas lhe resistem com pé-franco (como as do Noval Nacional) e outras não.
Pelo que li, a explicação mais plausível (ainda que não unânime) é a de que "o que cresce em conjunto consegue viver em conjunto", defendida por Maureen Moroney da Universidade Estadual de Iowa (EUA). A videira americana Vitis labrusca conviveu ao longo da sua existência com a filoxera, "aprendendo" a sobrevier a esta.
Já a videira europeia, Vitis vinifera não ganhou defesas contra este inseto, acabando por sucumbir quando em contacto com ele. (Reparem que isso também acontece connosco humanos, algumas bactérias podem ser quase letais para uns povos e conviver "pacificamente" com outros.)
Maureen Moroney defende também, que as videiras em pé-franco acabam por gozar da protecção das videiras com pé americano que possam existir na sua vizinhança, reforçando que não conhece nenhuma plantação em pé-franco que sobreviva a uma distância considerável de vinhas em pé americano. Acho esta explicação demasiado simplista. Um dia destes visto a minha capa de Vespúcio Ortigão e vou procurar resolver este mistério da estrada de Mendiz, em pleno local onde decorrem estes estranhos acontecimentos, quiçá lá para Setembro... ;)
De um modo ou de outro, não podemos negar o óbvio: que os vinhos resultantes das vinhas em pé-franco (como este Noval Nacional 2019) têm uma profundidade, uma largura, uma complexidade e um carácter muito particular, características que me levam a dizer que a franqueza destas vinhas em pé-franco (para além do trocadilho semântico) é a coragem da verdade. É uma vitória constante sobre o medo do que poderá vir a acontecer. É um bem, por permitir uma forma de autenticidade, de naturalidade e de caráter em forma de vinho. ;)
Termino dizendo que para além de se debruçar sobre parte dos conteúdos vínicos que vos falei hoje, Francisco Moita Flores na Fúria das Vinhas usa também uma receita deliciosamente atual (sobretudo quando pensamos que foi escrito numa era pré-COVID): confronta uma investigação criminal nos primórdios da sua existência (e toda a inovação que esta acarreta), com o conhecimento do povo e as reticências desse mesmo povo em evoluir e em aceitar a ciência. Qualquer semelhança com a luta entre os actuais negacionistas e ciência não é pura coincidência.