Novos lançamentos Noval | O Deus das coisas que não são pequenas
"Naqueles primeiros anos amorfos, em que a memória tinha apenas começado, em que a vida era cheia de começos e sem fins, e tudo era para sempre, Esthappen e Rahel pensavam em si mesmos, juntos, como eu, e separadamente, individualmente, como nós. Como se fossem uma rara espécie de gémeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas... E isso são só as pequenas coisas.” Arundhati Roy
"O Deus das Pequenas Coisas" de Arundhati Roy é um romance que ocorre maioritariamente na pequena cidade de Ayemenem, no estado de Kerala, na Índia. Narra a história da família Ipe ao longo de várias décadas. O foco principal da história está nos gémeos Esthappen e Rahel, que nos leva a perceber o modo como o ambiente físico, cultural e social de Ayemenem molda as vidas e identidades destes irmãos. A narrativa alterna entre dois períodos: 1969, quando os gémeos tinham sete anos, e 1993, quando Rahel retorna a Ayemenem após alguns anos a viver no exterior.
Culturalmente, Ayemenem é um microcosmos das complexas hierarquias sociais da Índia. A rígida estrutura de castas e as normas sociais desempenham um papel fundamental no enredo. O relacionamento proibido entre Ammu, a mãe dos gémeos, e Velutha, um intocável, desafia essas normas e resulta em consequências trágicas. A transgressão das barreiras de casta é vista como uma violação das regras sociais estabelecidas, evidenciando o modo como o ambiente cultural pode restringir e moldar a vida das pessoas.
O ambiente físico de Ayemenem desempenha um papel crucial na formação das identidades dos personagens. A sua paisagem por vezes austera é descrita de forma lírica e vivida, criando um cenário que influencia directamente os acontecimentos que pincelam o livro. Este ambiente não é apenas um pano de fundo, mas uma força activa que molda a vida e as emoções dos habitantes. A constante presença da natureza e o clima opressivo, muitas vezes, reflectem os estados emocionais dos Ipe, amplificando as suas experiências, quer de de alegria, quer dor. Se esta família pudesse ser metamoforizada num vinho, Ayemenem seria o seu terroir, pois este ambiente actua como uma força invisível e omnipresente que define as características e o destino das pessoas/vinhos.
O conceito de terroir no vinho, esse Deus das pequenas coisas, refere-se à combinação de factores naturais e culturais que influenciam o cultivo da uva e a produção do vinho. Esses factores incluem o solo, o clima, a topografia e as práticas vinícolas de cada região. Cada um destes elementos contribui para o sabor, aroma e personalidade únicas do vinho, tornando-o uma expressão directa do seu berço.
No livro de Arundhati Roy há um rio que assume um papel principal, o rio Meenachal, onde no Inverno ocorrem chuvas torrenciais, no Verão surge um calor abrasador, na Primavera desperta uma vegetação exuberante, e no Outono um manto melancólico de folhas cobre as suas margens. Tudo isto vai criando um cenário que influencia directamente as emoções e os eventos da história. A constante presença da natureza reflecte e intensifica os estados emocionais dos personagens, assim como o terroir molda as nuances e complexidades de um determinado vinho.
No terroir dos vinhos que vos falo hoje, há também um rio que atrai para si todas as atenções: o rio Douro. Localizada no coração do Douro, a Quinta do Noval desfruta de uma posição privilegiada. Com seus 192 hectares de vinhas classificadas como letra A, é plantada exclusivamente com as castas mais nobres da região: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinto Cão e Sousão.
As parcelas da vinha apresentam uma diversidade geográfica notável, variando em altitude de 100m a 500m e expondo-se a todos os pontos cardeais. O solo, predominantemente de xisto com fragmentos de argila em mistura variável, contribui para nuances únicas nos vinhos, reflectindo a magia da Quinta do Noval.
A cultura da vinha na Quinta do Noval foca-se actualmente na replantação com uma única casta adaptada a cada parcela específica, levando em consideração altitude, exposição e o tipo de plantação da vinha. Os históricos socalcos em pedra de xisto, que datam de tempos remotos, permanecem como uma imagem icónica da propriedade. Com todo este legado, a Quinta do Noval destaca-se como o único exportador histórico de Vinho do Porto que leva o nome de sua quinta e produz Porto Vintage a partir de uma única parcela, quando declarado.
Esse terroir bem vincado emprestou fama, reconhecimento e excelência aos vinhos do Porto da Noval, sendo o Nacional o seu pináculo, no entanto, esse contexto físico-cultural está a colocar também os vinhos tranquilos num patamar que, para os mais desatentos, seria inesperado há alguns anos. Falemos então de alguns desses vinhos que provei recentemente.
O Cedro do Noval Branco 2023 (18.50 €, 90 pts.) de cor dourada clara e cristalina exibe aromas complexos a pêssego, pimento verde, flor de limoeiro, flores brancas, cedro e uma bela pedregosidade. No palato é seco, tem bom volume, excelente acidez, equilíbrio e uma ligeira untuosidade que lhe fica muito bem.
Por sua vez o irmão aristocrata Cedro do Noval Reserva Branco 2023 (35.50 €, 92 pts.) de traje dourado um pouco mais carregado exibia orgulhosamente esteva, limonete, alecrim, toranja, damasco, baunilha e uma ligeira tosta. Na boca é seco, fresco, harmonioso, gordo, complexo e longo. É daqueles para guardar algumas garrafas e ir conversando com ele de vez em quando.
Gostei muito do rubi cristalino Quinta do Noval Tinto Cão 2021 (39.50 €, 92 pts.), muito por culpa das suas notas ricas em groselha, cerejas, amoras, cassis, menta e pimenta preta. No palato mostra-se seco, fresco, austero, especiado, alegre e longo.
O Quinta do Passadouro Vintage 2022 (75.50 €, 93 pts.), apesar de não possuir uvas da Noval, é produzido com uma selecção rigorosa dos melhores lotes de vinhos provenientes de diferentes parcelas da Quinta do Passadouro, no vale do Pinhão, sendo mais tarde engarrafado pela Noval. De cor rubi quase densa e opaca emana cassis, ameixa seca, mirtilos, chocolate preto, pimenta preta, esteva e urze. Na boca é austero, fresco, longo e sumarento.
Para fechar a prova o rubi-violeta Quinta do Noval Vintage 2022 (95.50 €, 96 pts.). Tem um nariz muito frutado (frutos silvestres, ameixa preta e mirtilos), com pimenta, resina e algum sous-bois. Na boca é denso, rico, opulento, equilibrado, fino, complexo, fresco, assertivo e bastante ponderado.
São vinhos que pensam em si mesmos, juntos, como eu, e separadamente, individualmente, como nós. Como se fossem uma rara espécie de gémeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntas... E isso são só as pequenas coisas que um terroir único consegue transmitir ;)