O feiticeiro da Casa da Calçada | Rota das Estrelas no Largo do Paço
"Todas as naus são naus de sonho, logo que esteja em nós o poder de (as) sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o agente ... é não sonhar quando vive. De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real." Fernando Pessoa
Há duas semanas regressei ao sítio onde esta "paixão pelas estrelas"começou. O restaurante Largo do Paço, na Casa da Calçada. A "desculpa" foi participar no evento Rota das Estrelas :-P
Encontrei um Largo do Paço bastante diferente daquele que o chef Vítor Matos deixou. Desde logo, umas das coisas que não gostava foi alterada, os tons e a decoração da sala de jantar. Parece-me agora muito mais acolhedora, requintada e elegante. Algumas das extravagancias foram eliminadas e foram substituídas por bom gosto e contexto.
Já tinha dito anteriormente que para uma refeição ser única, memorável e arrebatadora não nos podemos preocupar apenas com aquilo que é servido à mesa. O ambiente, a decoração, a história do local e o que nos entra na mente quando olhamos em volta são muito importantes para completar aquilo que degustamos. A sala do Largo do Paço castrava um pouco a envolvente romântica existente no exterior, essa vertente foi agora fortalecida com a nova decoração.
O serviço continua a ser do que de melhor podemos encontrar em Portugal.
Acho que todos nós gostávamos de ser reis pelo menos por um dia, gostávamos de ter um dia só dedicado a nós, onde pudéssemos participar em banquetes, dormir num palácio, ter um dia cheio de mimos, descontracção, requinte e elegância. Todo o staff da Casa da Calçada faz com que, a partir do momento que entremos naquele lugar encantado, nos sintamos mesmo ... reis.
O chef anfitrião para este evento, como não poderia deixar de ser, foi André Silva, um chef que coloca paixão em tudo o que sai da cozinha. A experiência profissional deste jovem chef foi-se enriquecendo em vários restaurantes e hotéis, até que em 2015 assumiu a função de chefe executivo na cozinha na Casa da Calçada, Relaix & Chateaux, em Amarante conquistando a estrela Michelin, para o restaurante Largo do Paço. Convém realçar que nesta coisa das estrelas, não se mantêm, conquistam-se!!! André Silva ganhou também outro dos mais ambicionados prémios que um chef pode aspirar, foi considerado, no ano passado, o chef revelação, para este blog :-P
Como chefs convidados vieram Rui Silvestre do Bon Bon (estrela Michelin), João Rodrigues do Feitoria (estrela Michelin), Miguel Laffan do L'and (vai reconquistar este ano a estrela Michelin :-P), Ana Moura da Cave 23 e Vítor Sobral da Tasca da esquina e Peixaria da esquina.
Depois de umas deliciosas entradas e de uns espumantes delicados servidos no terraço do restaurante (não vou falar deles neste post pois o mesmo iria ficar enormíssimo, assim fica apenas ... enorme :-P) ao som de música clássica, tinha chegado a hora do jantar...
Para começar, uma estreia, Ruinart Brut. Neste champanhe é fácil percebermos as castas, Chardonnay e Pinot Noir, num lote delicioso. Possui umas bolhas finas e super elegantes. O aroma é muito delicado e fresco, com pão, limão, pêra e maçã bastante madura. É equilibrado, vivo, rico e atrevido. O final é harmonioso e longo. Fiquei fã!!!
O chef Rui Silvestre apresentou uma ostra de ria, sementes de abóbora e caviar que parecia oceano condensado. Para além de ser um prato muito fresco, com um sabor a mar arrebatador, foi complexo e suculento. A espuma produzida está só ao alcance de chefs com este gabarito. Uma combinação de sabores que me fez esquecer do Ruinart :-P
Seguiu-se um clássico, Anselmo Mendes Parcela Única 2014. É daqueles que não se percebe à primeira; austero, sério e forte, no entanto termina como se estivéssemos a beber seda líquida. Complexo, elegante, fino e bastante rico. A mineralidade, madeira e fruta estão de mãos dadas de forma absolutamente extasiante.
Os aromas são bastante expressivos a damasco, laranja e flor de limoeiro; seco, arredondado e muito perfumado. Persistente, intenso, no entanto ainda demasiado irreverente no inicio de prova. O toque a aniz no final matou-me :-P Para "combater" a complexidade deste vinho o Chef Miguel Laffan desenvolveu uma Cabeça de xara revisitada, tártaro de lagostins, cremoso de funcho, salada de cenoura com maracujá e bergamota. O sabor da cabeça de xara estava tão imponente que abafou os restantes elementos, no entanto, o vinho puxava um pouco por esses elementos, sobretudo pelo tártaro de lagostins, foi um "desafio" sensorial bastante engraçado e rico.
Depois, algo inesperado, com a minha casta branca favorita, Encruzado. O Quinta de Lemos - Dona Paulette 2014 mostra mineralidade, fruta e madeira sublimemente conjugadas. Uma melhor acidez e tinha-me apaixonado por este vinho :-P Pêssego, manga, camonila, resina, pinheiro, eucalipto, menta... A acidez está lá, mas muito tímida.
Longo, eloquente, elegante e misterioso. Como a maior parte dos Encruzados, as rugas vão-lhe fazer muito bem. Este vinho foi conjugado com um prato possuidor de um intenso sabor a mar em dia de nevoeiro: Dourada selvagem, cavacos dos Açores, feijão branco e tutano, proposta do chef João Rodrigues. O jogo de texturas foi fabuloso, a Dourada estava no ponto e o creme de feijão saboroso, suave e bastante agradável. A conjugação de sabores resultou na perfeição sendo aperfeiçoada por temperos com conta, peso e medida.
Chegou a vez do chef André Silva, com o seu linguado de mar, aipo, agrião, lula e sua tinta...
O vinho escolhido para a harmonização foi o Coche Niepoort 2014, um hino à mineralidade e um dos meus brancos favoritos, a fazer lembrar um Chardonnay de topo. Amarelo dourado, revela enorme complexidade, aromas muito densos, elegantes, luxuosos e com alguma tosta. A flor de laranjeira e a folha de limoeiro encontram-se perfeitamente envolvidos numa base floral. Na boca tem uma acidez deliciosa e irreverente. Senti também algas de mar que lhe dão umas notas salgadas e um pouco de excentricidade. Longo e misterioso...
Se o vinho é um hino à mineralidade o prato proposto pelo chef é um hino à "feitiçaria gastronómica". Já dizia Sidonie Colette “Se não sois capazes de um pouco de feitiçaria, não vale a pena meter-vos a cozinheiro”. No caso do André Silva, não só valeu a pena, como acredito que o melhor ainda está para vir. Este prato tinha tudo, complexidade, riqueza aromática, conjugação de texturas, requinte, uma apresentação sedutora e delicada. Lembram-se da conjugação entre espaço e comida que vos falei? Este prato parecia que tinha sido "desenhado" para aquela sala, muito, mas mesmo muito bom. Ao preparar o linguado, o chef juntou-lhe o caviar, os cogumelos e o agrião para lhe dar um toque de bom gosto e surpresa. Já o pão com a tinta de lula permite abrir horizontes ao nível da textura, cujo resultado é um prato demasiado grande para um chef com "apenas" uma estrela Michelin.
Como iria ser apresentado apenas um prato de carne foram servidos dois vinhos tintos, um do Alentejo e outro do Douro.
No Conde de Santar 2011 a cor ruby bastante sedutora anunciava logo um nariz com sugestões frutadas. Amora, ameixa, mirtilios, cereja e framboesa. Na boca surgem também as notas florais, o sous-bois, madeira, menta, especiarias e chocolate preto.
Possui uma excelente acidez, elegância e equilíbrio, taninos maduros e um extrordinário volume de boca. Tem um final longo, fresco e com muita classe. Vai envelhecer muito bem.
O Maria Izabel Vinhas Velhas Douro 2013 ficou um pouco abaixo do Conde. Apesar da cor ser parecida com a do alentejano, ruby bastante densa, é um vinho onde a densidade, fruta, complexidade e elegância estão muito bem conciliados, no entanto, os taninos ainda estão um pouco adstringentes, a fazer lembrar um Baga novo. Os aromas a fumo e frutos silvestres conciliados com alguma mineralidade amolecem um pouco o conjunto que ainda é bastante opressivo.
Quanto ao cabrito do chef Vítor Sobral ... houve qualquer coisa que não funcionou neste prato, pelo menos no que me foi servido. Já provei pratos confeccionados por este extraordinário e talentoso chef, gosta de inovar e modernizar os pratos tradicionais da nossa nobre cozinha. Realça sabores, temperos e amores, escolhe os ingredientes como ninguém, e normalmente o resultado são pratos surpreendentes, mas neste caso, foi a excepção que confirma a regra. Cabrito demasiado cozinhado e apresentação demasiado simplista para a noite requintada que estávamos a viver. Acho que é a primeira vez que estou a escrever algo parecido neste blog, mas tenho de ser sincero, também comigo mesmo...
Era chegada a hora das sobremesas... Para acompanhar a primeira foi servido um Blandys 10 anos Bual Madeira que mostrava uma cor muito sedutora, âmbar com reflexos rosa dourados muito brilhantes.
No nariz transmitiu nozes, uvas passas, mel, fumo, madeira, folha de tangerineira, manga e uns toques de especiarias. É muito corpulento, fresco e moderadamente doce. Pena o final um pouco discreto, embora com boa acidez.
A sobremesa proposta pela chef Ana Moura foi Amêndoa, chocolate branco, gengibre, açucar mascavado, limão, laranja, arroz e canela. Cada um dos ingredientes foi trabalhado de modo a poderem brilhar a solo mas ganharem dimensão em conjunto. Foi uma sobremesa com muita personalidade, entrega, segurança e conhecimento. Mais uma boa surpresa!!!
Quando, mais tarde, reparei no vinho que iria ser servido com a sobremesa do chef André Silva, sorri imediatamente de contente e esfreguei as mãos :-P Embora não sendo o meu favorito, partilho da ideia generalizada que estes Porto com 20 anos são o expoente máximo do requinte e delicadeza deste tipo de tawnies envelhecidos. São os que melhor conciliam o envelhecimento em madeira, e simultaneamente a protecção da qualidade da fruta.
A cor é a característica, âmbar e acastanhada tawny, no entanto já aparecem uns toques esverdeados.
Especialmente neste Graham's 20 anos, a prova é como visitarmos o pomar de um amigo localizado na Índia :-P Fruta e especiarias muito bem misturadas. Nozes e canela, laranjas e amêndoas, canela e figos, pimenta e uvas passas, noz-moscada e avelãs, pimentão doce e caramelo...
No palato é aveludado, rico, complexo e harmonioso. Longo, delicado, elegante e requintado, é uma princesa dos tawnys, no entanto continuo a preferir as irmãs mais velhas :-P
Quanto à sobremesa, Mel do Marão, um nome tão curto para um prato que não cabia na sala. Estava de tal forma tão bem conseguido, que quase me esquecia de fotografa-lo, quase :-P
Numa visita anterior a Amarante tive o prazer de provar o mel do Marão, um mel produzido nas mais altas montanhas da Serra do Marão. Curiosamente o carácter diferenciador que encontrei nesse mel, personalidade, ligeiramente adstrigente, sabor intenso e longo, excelente acidez e densidade sensorial são as mesmas que descobri nesta sobremesa homónima. Pois ... para uma refeição ser única, memorável e arrebatadora não nos podemos preocupar apenas com aquilo que é servido à mesa, o chef André sabe-o melhor que ninguém.
O casamento entre apresentação, sabor, textura, nome, contexto e história foi esplêndido.
Se pudesse resumir numa palavra esta sobremesa, a palavra escolhida seria: felicidade!!!
Costuma-se dizer que cada garrafa de vinho conta uma história, acrescento que as sobremesas do chef André Silva contam várias, esta em particular, contou-me uma bonita sobre Amarante, os seus segredos, as suas gentes e os seus costumes.
Por fim, com os doces Amarantinos e queijos foram servidos vinhos do Porto como o Quinta de La Rosa Vintage 2011 (anis, ameixa, amora, xarope de alcaçuz, casca de laranja, compota de frutos do bosque, groselha, mirtilos, especiarias e alguma mineralidade) e o Quinta do Noval Colheita 2003 (madeira exótica, nozes, castanhas, amêndoas, pinhões, acho que os frutos secos estavam lá todos). No entanto, vou destacar outro...
Para o final, um grande abalo e o melhor vinho, Quinta do Noval Porto Vintage 2003, poderoso, grande, muito grande!!!
A elegância, a alma e a personalidade deste vinho são impressionantes.
Ruby muito escuro, intenso e opaco até à auréola, surgem no entanto alguns apontamentos cor púrpura no que lhe dão uma beleza extraordinária. O nariz é muito floral, com violetas, lavanda, esteva e jasmim. Parecia que a Primavera tinha sido aprisionada naquela garrafa. Mais tarde o nariz é enriquecido com a fruta preta, amoras, cassis, cereja madura, figos, menta e caramelo. Mais discretos, mas presentes, o queijo, o fumo e as especiarias tornaram o aroma deste vinho num dos mais complexos que cheirei. Na boca, tal como no nariz, o inicio é um pouco tímido, doce e algo gordorento, mas logo depois cresce, ficando com uma riqueza e harmonia implacáveis. É um pouco bipolar devido à sua doçura e à austeridade dos taninos. O final é soculento, complexo, denso, longo e com carácter.
É daqueles que gostaria de o poder voltar a provar, quando os taninos amadurecerem, abrindo espaço para a acidez se manifestar ainda mais, deixará de ser um vinho, passará a ser poesia engarrafada.
Gostei tanto dele que fui imediatamente consultar o seu preço, 850 euros na Garrafeira Nacional, pois...
Ainda assim, depois deste vinho, ainda pensava na sobremesa do chef André.
A verdadeira felicidade vem da alegria de fazermos coisas que nos saem do coração, do sabor de criar coisas renovadas e de criar coisas renovadas que não percam o sabor. Acho que depois de cortar algumas ligações (más) que o ligavam a um passado recente, este chef está pronto para concretizar o seu grande sonho.
Completando a frase de Fernando Pessoa com que iniciei este post, matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.
Nunca mates esse sonho enfeitiçado André!!!
Parabéns também para o escanção Adácio Ribeiro, excelente escolha e preparação dos vinhos...
Créditos: O retrato do chef André Silva constante na segunda foto desta publicação foi obtida no facebook da Casa da Calçada Relais & Chateaux.