Porto Extravaganza 2024 | Sonhos que sopram eternidade
"Todos nascemos 100 anos antes de vir ao mundo." Fátima Campos Ferreira
Estamos a 8 de Janeiro de 1935 em Salinas, no estado da Califórnia. Numa noite de chuva e vento, John Steinbeck, com insónias, liga o candeeiro da sua mesa de cabeceira e saca de um lápis e de um caderno amarelado, determinado a dar vida às histórias dos marginalizados na América.
É assim que é iniciada a escrita do icónico romance "As Vinhas da Ira" que irá capturar a luta e a resiliência do povo americano durante a Grande Depressão. À mesma hora, a 3400 km de distância, em East Tupelo, no Estado do Mississippi Vernon Elvis e Gladys Love abraçam-se num choro partilhado, quando percebem que o seu bebé havia nascido morto.
35 minutos depois voltam a sorrir. Esse parto ainda não tinha acabado. Um outro menino nasce sob a luz das estrelas: Elvis Presley. Sem saber, esses dois futuros ícones da cultura americana estão prestes a moldar a narrativa do país de maneiras inesperadas. Ainda neste ano é comercializada a primeira lata de cerveja, assim como a primeira peça de roupa íntima masculina, e os primeiros parquímetros começaram a ser instalados nas ruas.
As descobertas científicas também são marcantes: a tecnologia do radar é aperfeiçoada e o neutrão é descoberto. São quebradas velocidades recordes em barco, avião, carro e até a pé. A Barragem Hoover e a rede de metro de Moscovo abrem as suas portas pela primeira vez. Mas, nem todas as notícias são boas.
O mundo está em tensão; conflitos entre a Itália e a Etiópia dividem a Liga das Nações, e na Alemanha nazi, Adolf Hitler implementa leis para marginalizar e oprimir os judeus. Ainda neste ano, o senador Huey Long, candidato à presidência dos EUA, é assassinado, um sinal sombrio das turbulências políticas que se aproximavam, com o epítome a ocorrer 3 décadas depois.
Avancemos então para 28 de Agosto de 1963. Estamos agora no coração de Washington D.C. nos EUA, diante de uma multidão impressionante que se estende até onde a nossa vista consegue alcançar. É um dia histórico, um momento que será lembrado por gerações. No centro de tudo, vemos que um homem de estatura mediana, de constituição robusta e presença imponente avança com passos firmes.
O seu é semblante sereno, mas carregado de uma força que parece inabalável. Ele está no auge da sua liderança, cercado por milhares de pessoas que a ele se juntaram nesta marcha pela justiça e igualdade. O sol brilha forte sobre o National Mall, fazendo-se reflectir no Memorial de Lincoln, onde esse homem intrigante agora sobe os degraus.
A tensão é palpável. Há um silêncio expectante entre a multidão, enquanto ele se posiciona diante do microfone. Os olhares são de esperança, determinação e, talvez, uma ponta de ansiedade. Todos sabem que o que ele está prestes a dizer tem o poder de mudar o curso da história. Jamais aquela frase passará em claro.
E então, com uma voz firme, mas cheia de emoção, ele começa o seu discurso: 'Eu tenho um sonho...' Cada palavra ressoa com clareza, atingindo os corações e mentes de todos aqui presentes. É como se o próprio ar tivesse sido preenchido com as promessas de um futuro melhor, onde a cor da pele não determinará o valor de uma pessoa, onde a liberdade e a justiça serão as fundações de uma nova sociedade.
Os rostos na multidão iluminam-se. Alguns choram, outros erguem os punhos em solidariedade. O clima é de união e resistência pacífica. Martin Luther King Jr. está aqui, não apenas como um líder, mas como uma voz para milhões que clamam por mudança. As suas palavras ecoam pelo ar deste dia quente de Agosto, uma mensagem de esperança que já se está a enraizar nas fundações de todos os que o ouvem.
Hoje, aqui em Washington, a história está a ser escrita diante dos nossos olhos. Este ano fica também marcado pela Beatlemania, com os The Beatles a conquistarem corações e mentes. A 26 de junho de 1963 o presidente John F. Kennedy faz uma visita a Berlim Ocidental, proferindo a famosa frase "Ich bin ein Berliner" em solidariedade com a cidade dividida e como um aviso contra os perigos do comunismo.
A inovação tecnológica continua a avançar: Os telefones de disco entram em cena, enquanto o mundo se ajusta a uma população de 3,2 bilhões de pessoas (hoje o número passou para 8 bilhões) . No entanto, tal como em 1935 a sombra da tragédia começa a pairar sobre o final deste ano.
Demos então outro salto, agora para Dallas, Texas, a 22 de Novembro de 1963, onde o dia nasce com sol radiante. A cidade está tomada por uma atmosfera de entusiasmo, com milhares de pessoas nas ruas para assistirem à passagem de uma limusina onde um casal sorridente acena para a multidão.
O carro conversível desliza pelas avenidas no meio de uma multidão calorosa. É uma cena de alegria, confraternização e optimismo, até que... De repente: Pa!!! Pa!!! Pa!!! Três disparos rápidos. O choque é instantâneo. O presidente John F. Kennedy, que ainda há pouco acenava com vida e energia, inclina-se agora para a frente, as mãos subitamente agarram o seu pescoço.
O seu sorriso desfaz-se e num segundo que parece uma eternidade cai para o lado, sobre a primeira dama Jacqueline Kennedy, que o abraça com desespero e horror. O sangue começa a manchar suas roupas e o pânico espalha-se. A multidão, que ainda há instantes estava em êxtase, agora está num caos absoluto.
Os gritos ecoam pelas ruas de Dallas. As pessoas correm sem direcção, enquanto a limusina acelera em um frenesim de desespero, levando o presidente para o hospital mais próximo. O vestido de Jacqueline, rosa, muda de cor manchado pelo sangue do presidente. É um momento de dor insuportável.
O homem que representava o futuro da nação, a juventude e a esperança de uma nova era, agora jaz silencioso e imóvel. A notícia espalha-se rapidamente , e um silêncio de luto começa a cobrir o país. O presidente John F. Kennedy foi assassinado, em plena luz do dia, diante dos olhos de todos, e o mundo nunca mais será o mesmo.
Falemos agora de sonhos...
John Steinbeck sonhava em dar voz aos marginalizados. Com "As Vinhas da Ira", ele revelou a dor e a resiliência dos mais oprimidos pela crise económica, acreditando na força da narrativa para mudar consciências. Elvis Presley, por outro lado, sonhava em quebrar barreiras culturais e raciais através da música.
A sua mistura inovadora de blues, gospel e rock não conquistou só os TOPs de vendas, mas também desafiou as normas e preconceitos da sua época. Martin Luther King Jr., por sua vez, sonhava com um mundo onde as pessoas não seriam julgadas pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu carácter.
A Marcha de Washington foi o ápice de sua esperança numa sociedade de igualdade e justiça racial. John F. Kennedy, o mais jovem presidente da história dos EUA, sonhava em conduzir o país para uma nova era de progresso, paz e direitos civis, acreditando no poder da juventude e na necessidade de enfrentar o comunismo com diplomacia e liderança.
Muito antes de todos estes acontecimentos, em 1866, Hans Christian Andersen, o mestre dos contos de fadas, parecia adivinhar o que aconteceria décadas depois, materializando-o numa cidade portuguesa. Nesse ano desembarca em Portugal e, ao explorar Sintra, fica deslumbrado com a beleza quase encantada da paisagem.
Ele vê nas montanhas cobertas de névoa, nos castelos misteriosos e nas ruelas pitorescas, não apenas um cenário de sonho, mas também um reflexo das lutas e esperanças humanas que sempre estiveram no centro das suas histórias. Em "Uma Visita em Portugal", Andersen revela sua admiração por essa terra cheia de contrastes e pela história profunda que ela carrega.
No entanto, ele também reflecte sobre as adversidades que observa, o que o faz perceber que, em qualquer lugar do mundo, a humanidade partilha um destino comum de luta e esperança. O sonho de Andersen, então, repete-se anos mais tarde em Steinbeck, Presley, Kennedy e King: o desejo de construir uma ponte entre o sofrimento e a beleza, entre as adversidades e os triunfos, entre a música que cura e as palavras que transformam.
Assim como os sonhos desses visionários, existe outra força que precisa de tempo, paciência e metamorfose para se concretizar verdadeiramente: o vinho. Uma garrafa não se torna verdadeiramente extraordinária apenas pelos seus sabores, aromas ou subtileza da sua acidez. É no silêncio da sua longa maturação, ao longo de décadas, que ela adquire profundidade e alma, tornando-se uma silenciosa testemunha de cada instante histórico que atravessa.
Tal como os eventos marcantes de 1935 e 1963 com que hoje vos introduzi este texto, o vinho transforma-se com o tempo, absorvendo não só as características do solo e do clima, mas também o sopro dos momentos que moldaram o mundo. Ao ser aberta anos depois, uma garrafa revela-se como um portal para o passado, onde cada nota nos devolve os ecos dos sonhos de Steinbeck, de Presley, de Kennedy e de King.
Como se as memórias de cada um deles, com todas as suas lutas e aspirações, tivessem sido pacientemente guardadas dentro de cada gota. Quanto mais não seja, por haver cromos como eu que se interessam pelo contexto de cada garrafa. Tal como as grandes ideias que precisam de décadas para amadurecer e frutificar, um vinho daqueles com que sonhámos todos os dias e provámos de vez em quando, não nasce da noite para o dia.
Ele exige tempo para absorver a sua própria história e se transformar numa obra-prima, lembrando-nos de que, tanto nas vinhas quanto na vida, as grandes transformações pedem paciência, resiliência e a força de suportar as intempéries do tempo. Foi em Sintra, numa prova de vinhos memoráveis, que me interessei por 1935 e 1963, e que todas essas histórias se entrelaçaram. Falo-vos do Porto Extravaganza 2024.
Tive a honra de participar em duas provas memoráveis. A primeira, Symington Single Harvest Tawny & Vintage Port, foi liderada pelo talentoso enólogo Charles Symington e Gonçalo Brito, da área comercial. Entre Tawnies e Vintages, jovens e antigos, destacaram-se três obras primas o Dow’s Vintage 1963, a querer perpetuar o seu estatuto de lenda, o puro sangue Stone Terraces Vintage 2011e o Graham's Tawny 50 anos, uma verdadeira peça de joelharia.
A segunda, o Universo Rozés Port, brindou-nos com que de melhor esta casa faz em termos de brancos velhos, Vintages e Single Year Tawnies. A prova decorreu sob a batuta de Manuel Henrique Silva acompanhado pelo administrador da empresa, António Saraiva que enriqueceu a conversa com apontamentos, por vezes descontraídos, outros bastante curiosos, que trouxeram ainda mais enquadramento à prova.
Entre os momentos altos, destaco o soberbo Rozés LBV 1983 que fazia corar de vergonha alguns Vintages que por aí se passeiam com altivez (o ano ajuda neh? :P), além de magnífico Rozés Colheita 1935, do excêntrico Dom Rozés e do sumptuoso Rozés Very Very Old White Port.
Falemos então dos destaques. Comecemos pelo Dow’s Vintage 1963 (700 €; 100+ pts.), de porte rubi acastanhado muito cristalino. No nariz, o vinho abre-se com uma profundidade aromática notável. Há uma predominância de frutos secos, como figos e tâmaras, misturadas com notas frescas de cereja e um leve toque de esteva. Com o tempo, no copo, surgem notas mais complexas, como tabaco e cedro, que mostram o quanto o vinho amadureceu de forma elegante. No paladar, o sabor é suave e sofisticado, com taninos quase totalmente integrados, conferindo-lhe uma textura sedosa. A acidez ainda vibrante proporciona um equilíbrio incrível para a doçura, e há uma longa persistência de frutas maduras, como ameixas secas e cerejas negras, acompanhada de um final levemente terroso e especiado.
O Stone Terraces Vintage 2011 (800 €; 100+ pts.), rubi denso revelou um perfil aromático rico, com manga, violetas, noz e bergamota. No palato revela níveis incríveis de concentração, substância e equilíbrio. A estrutura tânica era impressionante assim como a acidez aguerrida. É um vinho tanto elegante quanto robusto. O melhor, é que o melhor dele ainda está por chegar ;) O castanho-alaranjado com laivos verdes Grahams Porto Tawny 50 anos (500 €; 100+ pts.) passeou-se na sala com acácia-lima, casca de laranja confitada, caramelo, canela, tosta e crème brûlée. Na boca é untuoso, equilibrado, complexo, fresco e muito longo.
Já na prova da Rozés, o Rozés LBV 1983 (??? €; 96+ pts.), laranja-cobre passou para o nariz com anis, compota de groselha, especiarias, pimento e notas mentoladas. Na boca entrava cremoso, fino e com uma doçura perfeitamente equilibrada pela acidez. O Dom Rozés, Very Very Old White Port (350 €; 98 pts.), quase a completar um século de vida, surgiu no copo cobre-alaranjado emanando notas de bolo inglês, caramelo, café e melaço. No palato é denso, equilibrado e mostra uma acidez acutilante.
O último destaque vai para o cobre-esverdeado Rozés Colheita 1935 (490 €; 99 pts.) que exibia orgulhosamente caramelo, ameixa seca, frutos secos, sous-bois, iodo, café e caixa de tabaco. Na boca mostrava-se focado, elegante, complexo e persistente.
Ao saborear estes vinhos antigos, ao longo destes dois dias, fui transportado para um tempo que moldou nossos pilares, mesmo antes de nascermos. A cada gole, relembramos que muitos dos eventos que nos definem foram sonhados cem anos antes, plantando as sementes de uma humanidade que continua a acreditar num futuro melhor. Uma celebração da perseverança, do sonho e da capacidade de se erguer mesmo nos momentos mais sombrios.
Paulo Cruz, é o pai do aclamado Porto Extravaganza, destaca-se não só pelo rigor na escolha dos vinhos, mas também pela maneira singular com que conduz as provas, criando um ambiente educativo e descontraído que envolve todos os participantes. Ao longo dos eventos em que já participei, sente-se a sua alegria em partilhar conhecimentos e vinhos de topo, uma energia que se propaga pela sala.
Ele parece incorporar o espírito sonhador de Steinbeck, Presley, Kennedy e King, cuja busca incessante pelo ideal maior ecoa em cada gole de vinho que serve. Tal como essas figuras do passado o, Paulo busca algo eterno: não apenas a apreciação do vinho, mas a conexão entre as pessoas através de uma experiência autêntica e significativa.
Sabe que o verdadeiro luxo não está "apenas" na qualidade do produto mas também da experiência que de lá conseguimos sacar. Assim, consegue-se extrair o máximo de cada prova, valorizando a essência de cada garrafa, tornando a complexidade do vinho algo tangível e envolvente. Pelo Porto Extravaganza cada vinho é uma viagem, por vezes com destino a nós mesmos, e Paulo é o guia que transforma essa viagem em algo inesquecível.
De resto os seus gostos até são bastante modesto, deseja "apenas" servir o melhor aos seus convidados. ;) Afinal, como os grandes sonhadores que vos escrevi hoje, ele também se dedica a algo maior do que a si mesmo, algo que sopra eternidade em cada garrafa que escolhe.
Obrigado Paulo pela partilha de mais estes pedaços de História.