Quinta de Monforte | Prometeu, Ícaro e Ulisses
"Sempre houveram duas religiões, uma das quais nos puxa para fora e para as práticas, e a outra, pelo contrário, que nos reconduz a algo de indomável em nós mesmos." Émile-Auguste Chartier
Há histórias que se repetem ao longo dos séculos, em diferentes línguas, credos e geografias. São os mitos de Prometeu que rouba o fogo dos deuses, de Ícaro que desafia os céus, e de Ulisses que dobra o mar e o destino.
Em cada uma delas, há um elemento em comum: a tentativa humana de moldar aquilo que, por natureza, resiste. O indomável. O bruto. O que não se curva facilmente à vontade dos homens.
Mas domar não significa aniquilar. A verdadeira mestria está em entender os ritmos da natureza, respeitar os seus caprichos e, com paciência e engenho, revelar a beleza escondida sob a superfície. Na música, é o fado que se transforma em lamento e narrativa.
Na literatura, é o selvagem que aprende a coexistir sem perder a essência. No vinho, é a casta que sempre foi vista como rústica e áspera, mas que, nas mãos certas, se revela surpreendente.
Há castas que carregam o peso da sua reputação como um fado, um destino inevitável. O Vinhão sempre foi visto como um vinho rústico, denso, ácido, difícil de domar. E, no entanto, há quem desafie o destino...
A Quinta de Monforte, em Penafiel, pegou nesta casta rebelde e deu-lhe uma nova roupagem: uma revolução tranquila, sem gritos nem espadas, apenas o silêncio cúmplice do tempo e do saber.
Mas antes dessa interpretação sui generis da casta Vinhão, falemos de outros quatro vinhos da Quinta de Monforte: o Quinta de Monforte Rosé 2023 (também feito com a casta Vinhão); o Quinta de Monforte Alvarinho 2022; o Quinta de Monforte Loureiro 2022; e o Quinta de Monforte Vinhão 2023.
O Quinta de Monforte Rosé 2023 (16 €; 88 pts.) é também ele um desafio à lógica tradicional. Como transformar um tinto tão escuro num rosé delicado? A resposta está na maturação precoce, na prensagem suave e na mínima intervenção. O resultado é um rosé gastronómico, sério, seco, que lembra mais a subtileza de um haiku japonês do que a exuberância de uma tarde de verão na Côte d’Azur. De traje rosa, exibe subtis notas de amoras e framboesas. Na boca mostra-se sério, pedregoso e seco.
O Quinta de Monforte Loureiro 2022 (12 €; 85 pts.) é um vinho que parece nascido de um jardim primaveril. O nariz exibe um perfumado delicado de citrinos, maracujá, flor de laranjeira e um toque de tília. Na boca, surpreende pela sua acidez vibrante e mineralidade cortante, como um riacho de montanha que refresca mas nunca se impõe. Um vinho elegante, feito para quem aprecia brancos que dançam na linha entre o floral e o austero.
O Quinta de Monforte Alvarinho 2022 (17 €; 86 pts.) é um Alvarinho que não se limita a seguir a cartilha. Há a fruta de sempre, notas de lima, toranja e uma erva seca agradável, mas há também uma profundidade que se constrói na boca. Mais estruturado, untuoso e persistente, este Alvarinho não é um vinho de sede, antes sim um vinho para a mesa, para pratos ricos, onde a sua textura e frescura encontram o equilíbrio perfeito.
O Quinta de Monforte Vinhão 2023 (16 €; 86 pts.) mantém ainda um pouco imagem tradicional da casta, com pequenas indicações do que se verá no Grande Reserva. Pisa a pé em lagar de pedra, estágio em inox e um olhar contemporâneo sobre o Vinhão. O nariz exibe fruta negra, lagar e leve toque terroso. Na boca, mostra-se surpreendentemente suave, arredondado e fresco, como se a rusticidade habitual da casta tivesse sido esculpida sem ser apagada.
Já o Quinta de Monforte Vinhão Grande Reserva 2021 (96 €; 90 pts.) é "vinho de outra pipa" :P Um Vinhão que olha para o futuro sem pressa. 12 meses em barrica e 24 meses em garrafa não o amaciaram: tornaram-no mais complexo, mais intrigante. O tempo retirou-lhe o excesso de fruta e trouxe-lhe camadas de especiarias (sobretudo noz-moscada), balsâmicos e um toque de couro fino. Na boca, é denso, poderoso e tenso, um vinho que pede pratos robustos (vai super bem com uma lampreia) e uma noite longa. A casta que sempre foi vista como selvagem prova aqui que também pode ser clássica.
No final, fica a certeza de que a verdadeira mestria não está em negar a natureza das coisas, mas em aprender a escutá-las. O Vinhão da Quinta de Monforte não foi domesticado, foi compreendido. E talvez seja essa a grande lição...