Restaurante 3 Pipos | Lá ainda existe lá
"Persistência é a irmã gémea da excelência. A primeira é a mãe da qualidade, a outra é a mãe do tempo." Marabel MorganPara aqueles que ainda não sabem, Guimarães para além de ser o berço do nosso país, é também a minha cidade berço. Nasci no seu antigo hospital, mesmo ao lado do Castelo e passei a minha infância numa pequena vila vimaranense: Moreira de Cónegos. Com os 18 anos chegou a universidade e a minha mudança para Braga. Com o início da minha carreira como professor de Física e Química, aos 22 anos, regresso a Moreira de Cónegos, mas sem nunca deixar a investigação cientifica na Universidade do Minho.
Com 24 anos o meu lado cientista vai ganhando cada vez mais terreno ao meu lado docente, e regresso a Braga. Aos 27 deixo definitivamente de leccionar no secundário. No decorrer do doutoramento vou saltando entre Braga, Cambridge, Madrid e Bilbao. Aos 28 caso, termino o doutoramento e regresso a terras vimaranenses, desta vez para viver em Caldas das Taipas, local por onde me tenho mantido. Quero com isto dizer que a minha vida tem sido uma série de fases caracterizadas por sair ou regressar a Guimarães.
Em cada uma dessas diferentes fases da minha vida, fui ganhando o orgulho bairrista que caracteriza qualquer vimaranense. Por vezes, perco-me no horizonte da minha memória na busca do momento a partir do qual comecei a reconhecer e valorizar Guimarães, os lugares e pessoas associadas à cidade, como os meus, como o sitio de onde pertenço, como a minha casa. Costuma-se dizer por Guimarães que esse orgulho pela terra, pela nossa terra, nos é transmitida através do ADN, de pais para filhos. No meu caso até parece fazer sentido, visto que, já pertenço, no mínimo, à quinta geração que residiu em Guimarães.
Foi com esta "mania" de achar que percebia de onde vem o sentimento de pertença a algum lugar (e que cinco gerações me davam esse direito) que comecei a ler o «Lá não existe lá» de Tommy Orange. Este é um romance poderoso, o primeiro deste jovem autor, mordaz, inquietante e inovador (foi eleito um dos melhores livros de 2018 pelo New York Times), que entrelaça um conjunto de vozes de índios norte-americanos numa narrativa polifónica sobre família, perda, identidade, poder e pertença. Nesse livro, a cidade berço é Oakland, na Califórnia.
É quase como uma ambiciosa meditação realizada em conjunto, por 12 personagens, todos índios nativos americanos, sobre a identidade e suas alternativas forçosamente artificiais; sobre o mito daquilo que chamamos casa, filtrado pelas lentes do tempo e pelo caos da vida urbana; sobre a tradição ancestral do berço ainda mais premente devido à sua fragilidade; e que procura derrubar estereótipos sobre a literatura, sobre o pensamento e sobre as atitudes tomadas pelos nativos americanos nas cidades. Tommy Orange parece que nos faz querer conceber uma antiga e saudosa Oakland, como um locus de desejo, legado e sonhos, refazendo-a à semelhança das memórias desse conjunto fascinante de personagens.
Fiquei abismado com a enorme complexidade e diversidade das histórias, culturas e saberes das várias tribos que em conjunto compõem os "índios das planícies". Cheguei-me a emocionar com a prosa em torno do lugar, das memórias e das práticas primitivas que os fazem ser um povo, e também com a forma como os personagens do livro pensavam sobre o significado da perda, tanto da sua casa ancestral quanto dos locais que actualmente a representam. Foi incrivelmente humilhante perceber que, embora eu visse Guimarães como a minha casa ancestral depois da minha família ter por lá morado durante pouco mais de um século, as famílias de alguns índios das planícies mantiveram-se pelas suas terras por mais de ... 10.000 anos!!!
Este livro teve o condão de me fazer deixar os índios de Oakland e a sua luta, para embarcar em assuntos mais existenciais, e me por a pensar sobre inquietação e ambiguidade, sobre o estar preso entre dois mundos: de viver uma vida desfigurada pela perda do que já se foi (e pela memória dessa perda), mas também na necessidade incessante de se fazer sentir parte de algo no presente e de modernizar a identidade ancestral. Esta mistura dissonante, quando colocada em lume brando, dá profundidade, sentido, actualidade e uma espécie de riqueza às memórias, fazendo com que a inovação seja um eco ressonante da tradição.
O título do livro vem de uma das suas passagens, em que um dos personagens nos revela: “descobri que ela estava a falar sobre como o lugar onde ela cresceu em Oakland, havia mudado tanto, se tinha desenvolvido tanto, que o lá da sua infância, esse lá, já se foi, já não havia mais esse lá.” Orange, recorrendo a alguns paradoxos que os seus personagens habitam e incorporam, parece querer avisar-nos para o que a falta de nostalgia pode trazer às nossas vidas demasiadamente urbanas, apressadas e cheias de preconceitos. Esse aviso, passa a estalada literária nas últimas linhas do livro. Esse lá, o lá da identidade, o lá da memória, o lá da pertença, tem de continuar a existir lá de onde vimos, mesmo que esse lá tenha evoluído, crescido, adaptado ou inovado.
É assim que conseguimos crescer, modernizar e actualizar qualquer ideologia, conceito ou filosofia, sem perder identidade. Isto é válido para as terras, para os povos, para as pessoas, para as instituições mas também (e como já devem ter adivinhado depois de lerem o titulo desta publicação ;)) para a gastronomia. No âmbito desta ultima dimensão, hoje falo-vos de um local onde lá, felizmente, ainda existe lá: o Restaurante 3 Pipos em Tondela.
É um restaurante que mistura a tradição, a comida de conforto, o legado gastronómico da região e um serviço próximo, cuidado, atento aos detalhes mas descomplicado; com ingredientes da máxima qualidade, um serviço de vinhos exemplar (até na escolha dos copos para cada um dos diferentes momentos da refeição) e um ambiente ecléctico mas relaxado. Abriu portas em Maio de 1992 quando Maria de Jesus, António Miranda e João Cavaleiro recuperaram o espaço a partir de uma antiga adega, do respectivo lagar e de outros anexos que, outrora, serviam de apoio à preparação do vinho. Ainda no que ao vinho diz respeito, a carta tem mais de 450 referências das principais regiões portuguesas, havendo, é claro, um generoso destaque para o Dão.
O espaço é constituído por 5 salas, quase em labirinto, com paredes em granito, 3 lareiras, um jardim com 400 metros quadrados e uma lojinha. A decoração é casual, simples e natural, assente sobretudo em alfaias e outros utensílios agrícolas. Desse labirinto das memórias apenas é possível sair recorrendo ao olfacto, que nos conduz, invariavelmente, para a cozinha com forno a lenha e de onde saem as deliciosas iguarias servidas em travessas de barro preto de Molelos (aldeia do concelho de Tondela).
À volta dos tachos está Maria de Jesus (Jú, para os amigos), inspirada nos sabores antigos e tradicionais da Beira Alta. Apoiada, inicialmente, pela experiência da sua mãe, a D. Fernanda, muito conhecida nesta região pelo seu gosto e arte de cozinhar, soube rapidamente evoluir para uma cozinha adaptada à restauração, mantendo, contudo, os temperos e as características dos cozinhados que identificam as vivências desta região beirã, nunca deixando cair o "lá" da memória.
Começamos o almoço com um conjunto de entradas: Pataniscas de Bacalhau, Ovos verdes, Misto de enchidos, Provaduras, Moelas, Favas com chouriço, Cogumelos salteados com bacon e Queijo de ovelha da Serra da Estrela curado 12 meses, acompanhadas pelo floral, fresco e equilibrado Casa de Mouraz Biológico Encruzado 2019. Apesar de todas estas iguarias estarem carregadas de sabor, super apuradas e superiormente confeccionadas, destaco a untuosidade salivante das provaduras (uma espécie de picadinho de carne, resultante da prova das carnes que vão incorporar os chouriços e que são cozinhadas em azeite, pimentão e vinho), uma delicia!!! Dos enchidos do Fumeiro do Caramulo e das moelas, muito ricas, não sobrou nada (até as crianças adoraram), e as Favas com chouriço fizeram-me brindar a Eça de Queirós.
O corte muito fino do Queijo de ovelha Serra da Estrela curado 12 meses engrandeceu o seu sabor. Foi a primeira vez que o provei assim e fiquei fã. Seguiu-se o Lombo de bacalhau confitado, malandrinho de espinafres e enchidos, uma espécie de "risotto duriense", al dente, carregado de sobranceria, gosto e alegria. O bacalhau (de um produtor da região: o Sr. Bacalhau) com apenas um ligeiro toque do garfo lascava logo e exibia um sabor a mar inspirador. Em conjunto com o arroz provocava uma experiência gastronómica reconfortante que era enobrecida pelas notas de jasmim, mineralidade, acidez, frutos secos, cera e fumados do Maria João Colecção Privada 2014. Antes das sobremesas, Cabrito de leite à Casa, respeitando o receituário familiar, estava crocante por fora e suculento no interior, passeando-se no palato com temperos (ligeiramente picante) e tempo de confecção irrepreensíveis, aos quais se juntavam as batatas e umas inusitadas (e cativantes) migas de couve, feijão-frade, arroz, broa, azeite e alho.
Foi harmonizado com um enorme vinho, o Casa de Cello Quinta da Vegia Superior 2013, que emprestou ao cabrito mineralidade, frescura, fruta preta madura, notas vegetais e uns ligeiros abaunilhados. Uma combinação que merece ser desfrutada em família, com tempo, partilha e uma boa conversa. Só não digo que foi o melhor momento da refeição por causa de uma parte da sobremesa que se seguiu (e já sabem que eu até nem sou muito de doces). Essa sobremesa surgiu em forma de "pijaminha" de doçaria caseira com Morgado do Buçaco, Mulinho do Caramulo, Pudim de queijo da serra (a tal parte da sobremesa ;)), Farófias de forno, e Aletria conventual, na companhia do gastronómico espumante Quinta de Lemos Gégé Rosé. Não obstante de todas elas enobrecerem o cânone gastronómico da região, o Pudim de queijo da serra conquistou-me (acreditem que falei dele durante semanas!!!). É quase como se fosse um Abade Priscos com a doçura controlada, com a complexidade reforçada e com um aroma a queijo da Serra arrebatador. É despretensioso, mas fica na lista das sobremesas do ano para o blogue.
Existem locais e pessoas que nos marcam e aos quais temos a certeza que iremos regressar. O restaurante 3 Pipos e o António Miranda (filho), por tudo o que vos disse anteriormente, entraram para essa lista restrita. ;) O 3 pipos celebra 30 anos no próximo mês, 10 por cada pipo (;)), e há coisas que só chegam mesmo com o tempo: a persistência, a qualidade e a excelência. Obrigado por toda esta experiência enogastronómia memorável!!!