Restaurante Ferrugem | O brilho de uma sombra com memória
"Parece-me que na escala das medidas universais há um ponto em que a imaginação e o conhecimento se cruzam, um ponto em que se atinge a diminuição das coisas grandes e o aumento das coisas pequenas: é o ponto da arte... E o resto é ferrugem e pó das estrelas." Vladimir Nabokov
Perguntem a cinco amigos qual a sua "comida de conforto" favorita... Provavelmente receberão cinco respostas diferentes, em que pelo menos uma delas é: mas que raio é a comida de conforto? Isto acontece porque a noção de conforto naquilo que comemos tem a ver sobretudo com nostalgia e com memória.
O arroz da avó, a feijoada da mãe, a tarte da madrinha, a azáfama perto do fogão em dias especiais, as reuniões familiares ao redor da mesa, até mesmo um prato que odiávamos em criança e agora, inexplicavelmente, nos faz salivar (olá sopa de nabos :P). Portanto, não é de admirar que quando estamos mais em baixo, doentes ou simplesmente com saudades de casa, nada soe melhor do que alguns desses sabores nostálgicos, que nos fazem aninhar gastronomicamente em busca de aconchego.
Começo a achar que os historiadores divergem na opinião em relação às origens de praticamente quase todos os conceitos gastronómicos, a "comida de conforto", não é excepção. O Oxford English Dictionary aponta para um artigo do Washington Post de 1977 sobre comida sulista (camarão com grão, um prato amado nos Estados Unidos da América, particularmente no sul) como a primeira utilização desse termo.
Debates históricos à parte, a maior parte das pessoas (de diferentes países ou culturas) concordam com três atributos desse tipo de comida reconfortante: têm elevado teor calórico, são pratos quentes e fumegantes e, o mais importante de tudo, são comidas que desencadeiam aquelas memórias de infância, quase sempre afectuosas. Dessa forma, a comida de conforto tem a ver com o lugar de onde nós viemos, com aquilo que os nossos pais nos deram e, à medida que o nosso palato se vai educando, com aquilo que fomos provando fora de casa, num contexto também ele repleto de boas memórias. Este último ponto ajuda a explicar como é que o peru recheado do dia de Acção de Graças me remete para esse tipo de sentimentos.
É o equivalente gastronómico de um cobertor quente, um sofá confortável e uma lareira acesa. É algo familiar e reconfortante, algo que nos injecta uma sensação quase palpável de bem-estar. Muitas vezes, é um prato que nos lembra a segurança e a protecção da infância, o amor pela família ou a importância da amizade. Pode evocar memórias de refeições compartilhadas, entes queridos e eventos felizes, tudo ao mesmo tempo.
Numa visão mais cientifica do assunto, Cheryl K. Webster (médica de saúde mental doutorada em Psicologia da Saúde Clínica e Psicologia Neurológica e também autora do blogue The Kashonna Files) concluiu nos seus estudos clínicos que os ingredientes que constam nesse tipo de refeições foram-nos passados pelos nossos ancestrais (sim, esses mesmos, os que caçavam mamutes e perseguiam javalis), e foram esses alimentos, que através dos tempos criaram e mantiveram comunidades, em refeições partilhadas em momentos especiais.
Estejamos nós a seguir receita de sopa da avó para combater uma constipação ou a tentar recriar um "prato de assinatura" da nossa mãe, os benefícios emocionais de preparar e consumir comida de conforto transcendem culturas, ajudando a trazer eustress (pelos vistos é uma espécie de stress positivo, não conhecia o conceito) a longo prazo, que liberta endorfinas que nos ajudam a regular o bom humor e reforçam o sistema imunitário.
Assim, e apesar de todos nós termos ideias diferentes sobre o que pode ser uma comida reconfortante e se esta deve ou não ser saborosa, o sentimento de amor, segurança e familiaridade que chega quando nos atiramos de boca aberta para um prato destes, é algo verdadeiramente especial para todos aqueles que o saboreiam. Em tempos de incerteza, preocupação e dúvida, como aquele em que vivemos, esse tipo de comida é particularmente retemperador. Quantos de nós, durante o tempo que já dura esta famigerada pandemia, nos entregamos aos tachos e às panelas em busca de conforto, tentando recrear coisas que fomos conhecendo enquanto crianças?
A nossa "divida moral" para com este tipo de gastronomia é, assim, colossal e é por isso que fico um pouco triste quando, por vezes, assisto não só a tentativas de menosprezar esse tipo de comida mas também aos esforços de incompatibilizar essa comida com o fine dining.
Em quantos restaurantes estrelados podemos encontrar caldo verde? E rojões? Será que podem servir cabidela? Acho que esse preconceito, algo elitista, advém do facto de se achar que se as nossas avós conseguiam produzir este tipo de refeição, tal não deve de ser muito difícil, desafiante, reconhecido ou valorizado.
Sou daqueles que acha que o nosso cânone gastronómico tradicional, aquele que abarca quase todas as comidas de conforto, deixa bastante espaço para uma interpretação original na sua confecção/apresentação. Nesse aspecto, há um Chefe português que claramente se destaca: o Renato Cunha do Restaurante Ferrugem.
Isto porque o Renato pega nesses pratos e dá-lhes outras texturas, outra apresentação, outras temperaturas e por vezes outros ingredientes. Com todas estas alterações temos uma experiência muito mais complexa e elaborada, mas sem que a memória (quer a organoléptica quer a das emoções, afectos e sentidos) seja comprometida.
Já fomos ao Ferrugem inúmeras vezes, na última delas encontrámos um restaurante que se aproximou muito do brilho estrelado que ambiciona, mas sem nunca se desprender das suas origens. Começamos com a Sardinha e cebola em diversas texturas (caramelizada, compota, pickle, areia e jus). A sardinha, levemente braseada, conjugada não só com a acidez e doçura moderada dos acompanhamentos, mas também com a intensidade de cada um dos diferentes sabores fazia deste primeiro momento uma epopeia de descobertas de novas sensações no palato.
Seguiu-se a Sopa de peixe com robalo da costa atlântica. Surgiu na companhia da ameijoa, do mexilhão, do camarão e de um caldo delicioso. Conjugava, de forma inesperada, a frescura e maresia do peixe com um picante tão elegante quanto assertivo. Foi das sopas que mais me marcou, no final apeteceu-me mais!!!
Na estação gastronómica seguinte encontramos uma sui generis Língua de vaca com compota de nabo de gandra e folhas frescas biológicas (mostarda, rúcula, acelga e alcachofra). Vinha apresentada em forma de naco, crocante no exterior e aprisionando sucos muito intensos e saborosos no interior. A untuosidade no sabor e a delicadeza na textura harmonizavam muito bem com a acidez da compota de nabo. Muito bom!!!
O Robalo selvagem da costa atlântica e "à brás" de espargos verdes estava cozinhado no ponto. O "à brás" parecia querer competir com o robalo pela nossa atenção. Nesta competição quem acaba por ganhar é realmente quem o prova. É um prato simples mas eficaz, em que o foco está todo no produto. Seguiu-se um dos momentos altos do jantar: Bacalhau confitado em azeite virgem extra, puré de batata e colagénio de bacalhau, couve penca, cenoura e cebola em pickle. É uma reinterpretação do bacalhau com todos, tendo o ovo desaparecido para a batata ganhar destaque num puré divinal, portador da mesma untuosidade e sabor do bacalhau. É sobretudo um prato genuíno, generoso e com memória. É daqueles que faz lamber os lábios, só de pensar nele!!!
Falo-vos agora do meu favorito: Rojão e "sarrabulho" de cogumelos com secreto de porco alentejano, arroz carolino e trompetas dos mortos. Tinha tudo para não ser equilibrado e harmonioso, mas é-o e com distinção. O arroz chega a ser intrigante, al dente, com cominhos e o unami dos cogumelos. Os secretos estavam selados por fora, com a gordura braseada a dar origem a uma crosta (de) soberba e um sabor muito intenso. Se há pratos voluptuosos sem que se perca a elegância, este é um deles!!! Partilho convosco o que escrevi no meu caderno de apontamentos sobre este prato: "Amei!!! Comia disto todos os dias. Obrigado e parabéns Renato, a viagem valia só por isto..."
Para finalizar este repasto, Queijos portugueses, marmelada caseira e amêndoa; e Fondant de Cenoura, com pickle de cenoura, ganache de chocolate branco, chocolate preto, iogurte, gengibre, malagueta e poejo. Como não poderia deixar de ser estava construído sobre o sabor da cenoura, mas os restantes elementos pincelavam-no com muita originalidade, delicadeza, sentido e uma boa dose de presunção. A confecção e texturas do fondant estavam irrepreensíveis.
A comida encheu a sala que estava vazia, numa noite fria de um feriado. Foi o equivalente gastronómico de um cobertor quente, um sofá confortável e uma lareira acesa. A sala tornou-se familiar e reconfortante, injetando-me uma sensação quase palpável de bem-estar. Todo este cenário fez-me teorizar sobre o porquê do Ferrugem do Renato Cunha não ter a estrela e cheguei a uma conclusão. Tirando as sombras negras (ou serão antes contornos Brancos?) apenas vejo um motivo "mais na forma do que no conteúdo" para isso acontecer. E que motivo é esse? Outra sombra...
A sombra do sucesso que os pratos de assinatura do Renato mais conhecidos (como o caldo verde, o pastel de nata de bacalhau, o gelado de outono e o tributo ao abade de priscos v. 4.0) tiveram. Dito assim, parece uma contradição, pois se essas criações têm sucesso, isso deveria ser valorizado. O problema é que na visão de quem liga ou desliga uma estrela em Portugal, as cartas têm que ser mudadas pelos menos duas vezes num ano. Ou seja, para o Renato ter a mão na estrela teria de abrir mão desses pratos já (re)conhecidos. Acho que o Renato encontrou uma maneira engenhosa de resolver o problema: o de criar uma carta com esses best sellers e outra que muda conforme a estação.
Recentemente um passarinho contou-me que se essa intenção for materializada, o desígnio já há muito anunciado para o Ferrugem, pode, enfim, ser concretizado. Por tudo isto, se noutros restaurantes vejo a hipótese da estrela ficar menos cintilante (por estarem a aparecer cada vez mais casas com filosofias e contextos gastronómicos parecidos) aqui no Ferrugem vejo esse hipotese cada vez maior, porque ninguém faz o que o Renato faz: elevar a categoria de toda a gastronomia regional portuguesa para um nível condizente com fine dining e não apenas aqueles pratos da moda. Pinta as suas obras gastronómicas com poucos elementos no prato mas, paralelamente, aporta a cada um deles, uma densidade de sabor poderosíssima.
Apenas senti falta dos jogos com a temperatura que encontrei há uns tempos no Bacalhau com todos, de resto, por mim, podem dar a estrela ao homem ;)