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No meu Palato

No meu Palato

Roadtrip Costa Vicentina | Juramento eterno de sal (II)

"Com todas as tuas ofertas tu oferecerás também a mais valiosa de todas: sal!!!“ Antigo Testamento

Linha do Algarve - Meia Praia

O sal vem dos mares, estejam eles mortos, secos ou vivos. Pode borbulhar na superfície como salmoura, aparecer na forma de salinas ou esconder-se timidamente em cavernas. Abaixo da superfície terrestre os depósitos de sal quase parecem os vasos "sanguíneos" do nosso planeta,  acumulando-se em veias esbranquiçadas, algumas delas com milhares de metros de profundidade. Pode ser obtido através da evaporação da água do mar ou na extracção mineira em poços que se estendem por quase um quilómetro de profundidade.

Lagos

A história da nossa civilização segundo o sal é bastante simples e com poucos capítulos: os animais iam traçando caminhos para obterem o sal indispensável à sua subsistência. Os homens seguiram esses animais na busca de alimento. Esses primeiros trilhos desenhados pelos animais, com o nomadismo humano tornaram-se estradas e algumas povoações começaram a aparecer junto delas. Quando o cardápio humano mudou de caça rica em sal para os cereais, foram necessárias novas estratégias para complementar a dieta salina. 

BelmarComo os depósitos subterrâneos estavam na altura fora de alcance, a única fonte viável eram os mares. Essa escassez manteve o mineral precioso e fez com que as populações se fossem deslocando em direcção aos mares. À medida que a civilização se espalhou pelo globo, o sal tornou-se numa das mais importantes mercadorias comerciais do mundo.

BelmarAssim as rotas do sal começaram a serpentear pelo planeta. Uma das mais importantes ligava Marrocos  a Timbuktu, através do Saara. Partindo de Marrocos o sal chegava ao Egipto transportado em camelos. Depois, os navios que cruzaram o Mediterrâneo e o Egeu faziam-no chegar à Grécia. Heródoto (geógrafo e historiador grego do séc. V a.C.) descreveu minuciosamente essas caravanas que uniam os oásis de sal do deserto da Líbia: milhares de camelos viajavam em fila pelo Saara, do Norte Africano para as savanas do sul e de volta novamente, numa jornada perigosa que podia levar meses.

Belmar

Parando ao longo do caminho em oásis, as caravanas eram amplamente controladas pelos berberes que actuavam como cobradores de impostos, ficando com algum sal, ouro, cobre, peles, cavalos, escravos e outros itens de luxo.  Todo este comércio trazia consigo conhecimentos em arte, arquitectura e religião, levando civilização até às cidades mais isoladas de África.

Belmar

Noutro ponto do globo, a riqueza cintilante de Veneza não se devia tanto às especiarias exóticas que lá eram comercializadas, mas antes sim ao sal, que os venezianos trocavam em Constantinopla pelas especiarias da Ásia. Em 1295, quando voltou da sua famosa viagem à China, Marco Polo deliciou o Doge (o dirigente máximo da República de Veneza) com contos sobre o valor prodigioso das moedas de sal com o selo do grande Kublai Khan (governante do Império Mongol).

Ponta da Piedade

Já no séc. VI, no sub-Saara, o valor do sal igualou o valor do ouro. Na Abissínia (actuais Etiópia e Eritreia), placas de sal-gema, chamadas amôlés, tornaram-se a moeda oficial do reino. Cada uma tinha cerca de 25 centímetros de comprimento e 5 centímetros de espessura. A moda pegou e pequenos blocos de sal começaram também a ser usados como moeda um pouco por toda a África Central. 

Ponta da Piedade

O sal não só servia para dar sabor e conservar os alimentos, como também era um bom anti-séptico, razão pela qual a palavra romana para esses cristais salubres (sal) deriva de Salus, a deusa da saúde. De todas as estradas que levavam a Roma, uma das mais movimentadas era a Via Salária, a rota do sal, sobre a qual os soldados romanos marcharam e os mercadores conduziam carros de bois carregados destes cristais preciosos provenientes das salinas de Ostia.

Ponta da Piedade

O pagamento de um soldado - consistindo em parte de sal - ficou conhecido como solarium argentum, de onde derivamos a palavra salário, muito querida por todos nós. ;) O salário de um soldado era reduzido se ele "não valesse o seu peso em sal", uma frase que surgiu porque quer gregos quer romanos, muitas vezes, compravam escravos com sal. Por ser usado como conservante, o sal tornou-se também um símbolo de resiliência dos judeus do Antigo Testamento. O seu uso nos sacrifícios hebraicos como purificador da carne passou a simbolizar a aliança eterna entre Deus e Israel. Ainda na Bíblia, o sal é também uma metáfora para a graça e a sabedoria de Cristo.

LagosDurante a Idade Média, a santidade do sal transformou-se em superstição, passando o derramamento de sal a ser considerado agourento, um presságio da desgraça. Reparem que n'A Última Ceia de Leonardo da Vinci, o carrancudo Judas é mostrado com um frasco de sal tombado à sua frente. Todos sabemos o que aconteceu depois...

Restaurante o Mexilhão - Lagos

O simbolismo social do sal cresceu na realeza europeia do séc. XVIII. A categoria dos convidados num banquete era avaliada por onde eles se sentavam em relação a um saleiro de prata colocado na mesa. O anfitrião e os "ilustres" convidados sentavam-se à cabeceira da mesa, "acima do sal". As pessoas que se sentavam "abaixo do sal", mais distantes do anfitrião, percebiam então que eram de pouca importância.

Restaurante o Mexilhão - Lagos

Mais perto da nossa latitude, a costa atlântica da Península Ibérica é desde longa data conhecida pela produção de sal, sendo uma das actividades mais antigas do território Português, devido às óptimas condições geográficas e climatéricas: ventos dominantes fortes e quentes durante uma parte do ano e Verões com temperaturas elevadas e constantes. 

Restaurante o Mexilhão - Lagos

Curiosamente, o mais antigo documento conhecido sobre o sal português está datado no ano de 959 e descreve uma doação de terras e salinas de Aveiro, feita pela condessa Mumadona ao Mosteiro de Guimarães. Já no reinado de D. João I (séc. XIV), a quantidade de sal produzida era tanta que o governo facilitava a sua exportação para o estrangeiro (Holanda, Dinamarca, Noruega, França, Suécia o Reino Unido), uma medida com grande proveito económico.

Restaurante o Mexilhão - Lagos

O sal português foi sempre considerado como o de melhor qualidade, tanto em Portugal como no estrangeiro, e assim, era um artigo privilegiado, dispensado de qualquer imposto ou portagem. Apesar de todo este contexto bastante próspero e feliz, a referência mais conhecida a esse sal surge no “Mar Português”, na Mensagem de Fernando Pessoa, o sal que se mistura com as lágrimas de Portugal, aquele que rebenta nas ondas perigosas do mar alto.

Restaurante o Mexilhão - Lagos

No que a mim me diz respeito esta memória feita de cloreto de sódio não é assim tão triste quanto a desta pessoa em Pessoa. Não nos podemos esquecer que o sal desse mar é o mesmo que também entra pela terra, invadindo esteiros e misturando-se com braços de rios, onde depois os portugueses com arte e engenho extraíam esse ouro branco, contribuindo para uma das mais brilhantes páginas da nossa história. 

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Esse sal com um sorriso nos cristais é acrescido por memórias olfactivas em que o sal está invariavelmente presente. Há uma que no último ano ganhou um destaque especial: é o cheiro do sal, do cheiro do sal misturado com o do mar, do cheiro do sal a enriquecer o aroma do peixe grelhado, do cheiro do sal a misturar-se com o do eucalipto e do alecrim, do cheiro do sal a misturar-se com o do pó das estradas de terra.

Lagos

Toda esta panóplia de cheiros resumem-se em duas palavras: Costa Vicentina. Foi por tudo isto que achei que o sal deveria ter destaque no segundo capitulo da nossa #roadtrip2021. Curiosamente, numa das estradas de pó da Costa Vicentina e enquanto fazia zapping no rádio do carro, deparei-me com o «Juramento eterno de sal» de Álvaro de Luna que nos conta uma história, também feliz, também nessa costa, também numa viagem e também com o sal com papel de destaque: estava escolhido o titulo para uma das três partes da  nossa aventura por aquelas bandas.

Belmar spa & beach resort

Esse cheiro característico do sal vicentino também se misturou com o da ferrovia. Confusos? :P Se decidirem "fazer" a Costa Vicentina não podem deixar de guardar algum tempo para contemplar a beleza da linha do Algarve perto da foz da ribeira de Odiáxere. Aliás, toda essa zona merece que percamos tempo e ganhemos memórias com ela. 

Belmar spa & beach resort

Fica apenas a 15 minutos de carro do Belmar Spa & Beach Resort. Já vos falei de algumas das mais valias deste hotel na outra publicação, a todas elas acrescento o pequeno almoço. Com a variedade, quantidade e qualidade necessárias para que nos sintamos preparados para percorrer todas estas estradas. O contexto "paisagístico" é o que a imagem de cima faz transparecer.  

Passadiços do Alvor

A 15 minutos de carro da Foz da ribeira de Odiáxere situa-se um dos sítios mais bonitos que tivemos o prazer de contemplar nesta viagem: os passadiços de Alvor, os maiores do Algarve. Estão inseridos numa paisagem de beleza natural invulgar (as dunas, os sapais e o estuário atraem milhares de aves que se passeiam pelas praias douradas), entre a praia de Alvor, banhada pelo Atlântico, e a Ria de Alvor. Materializam-se num percurso circular com 6 km que passam num instante. Guardem uma manhã para estes passadiços, não se vão arrepender.

Passadiços do Alvor

Para recarregarem as baterias ao almoço, até porque o pequeno almoço do Belmar já lá vai (:P), aconselhamos o restaurante Mexilhão do simpatiquíssimo Pedro Guerreiro. Com as mãos nos tachos e panelas surge a esposa, a Chefe Cátia Almeida. O Pedro trata dos vinhos, dos gins e de rejeitar reservas para fazer cumprir o distanciamento físico, muito importante em tempos de pandemia. 

Alvor e Praia da Luz

A comida é genuína, sem maquilhagem e assente em produtos frescos e da máxima qualidade. Destacamos a untuosidade e maresia do lingueirão; a acidez e irreverência do mexilhão com cebolada; o conforto e textura do polvo com batata (o Gui adorou); a confecção perfeita e sabor delicado do atum; e a originalidade do peixe espada com banana, em forma de fish and ships algarvio. 

Praia da Luz

O meu prato favorito foi no entanto o peixe porco na chapa devido ao seu sabor intenso e à sua textura delicada. Para sobremesa experimentem os morangos com chantily, não se vão arrepender ;). Gostamos tanto que voltamos lá no dia seguinte para desfrutar de (parte de) um robalo com 4.5 kg!!!

Casa Velha: Quinta da Lago

A tarde foi reservada  para conhecer a a belíssima cidade de Lagos com a sua imponente cidade velha amuralhada, íngremes falésias (a Ponta da Piedade é de cortar a respiração) e o nada saudoso mercado de escravos. A Igreja de Santo António, uma igreja ornamentada em talha dourada do século XVIII, situa-se do lado oposto ao Castelo dos Governadores e é de uma magnificência indescritível, entra directamente para o top das igrejas mais bonitas que visitamos (não vão encontrar fotos do seu interior nesta publicação uma vez que tal não é permitido).

Marisqueira "O Perceve"

Para o jantar sugerimos o restaurante Casa Velha da Quinta do Lago. Fica a uma hora de Lagos mas vale bem viagem. A Clarisse só "reclamou" na ida... :P Foi o único fine dinning que seleccionamos para esta roadtrip, e em boa hora o fizemos.  Foi o primeiro local gastronómico da Quinta do Lago e conta agora com um novo Chefe de cozinha, Alípio Branco, que refinou o menu à la carte com pratos de autor assentes em produtos frescos, locais e sazonais. O menu de degustação (que entretanto, e como tem de ser, foi mudado para a nova estação) conta com identidade, pertença e originalidade, mas sobretudo conta ... uma história de uma região através dos aromas, das cores, das texturas e dos sabores.

Marisqueira "O Perceve"

Comungando com o principio, cada vez mais importante, de sustentabilidade o restaurante abastece-se de frutas de legumes na Q Farm, a quinta biológica da Quinta do Lago e nos mercados locais de Quarteira, Loulé, Albufeira e Olhão. O sal chega de Castro Marim, o mel de Moncarapacho e as ostras da ria Formosa. 

Praia de Salema

Esta relação com a comunidade envolvente é fortalecida também com o estabelecimento de uma forte ligação com os artesãos locais que foram desafiados para desenvolverem loiças e talheres únicos, que combinassem com a excelência da gastronomia que é servida do restaurante. Esta relação roça a perfeição no prato vegetariano. Tenho quase a certeza que este ano a estrela não lhes escapa... ;) Se estiverem curiosos sobre este restaurante leiam a critica que lhe fizemos. 

SagresParagem seguinte: a Praia da Luz, tristemente conhecida por um acontecimento marcante em Maio de 2007. Mas, felizmente, a Praia da Luz é muito mais que esse desaparecimento.  Foi outrora uma vila piscatória de grande importância, sobretudo entre os sécs. XIII e XVI. Nos dias que correm é uma povoação pitoresca e cosmopolita, com uma calçada na marginal, ladeada por grandes palmeiras, bonitas esplanadas e pelas muralhas da fortaleza que foi originalmente construída para proteger a povoação dos ataques de piratas provenientes do norte de África.

SagresAo fundo eleva-se imponentemente uma arriba muito ravinada pela escorrência das águas. Nesta arriba esbranquiçada, uma estranha formação rochosa mais escura sobressai na paisagem: a Rocha Negra, um filão vulcânico da Serra de Monchique que se estendeu até ao mar. Esta baía de águas calmas é propícia à prática de desportos náuticos como o windsurf, o kitesurf ou a canoagem. Um "simples" mergulho é obrigatório!!!

SagresFaçam esse percurso entre Lagos e a Praia da Luz junto ao mar, assim vão podendo contemplar algumas das mais bonitas praias do Algarve: a praia dos Estudantes, a praia do Camilo, a praia da Balança, a praia do Barranco do Martinho, a praia do Canaval e a praia de Porto de Mós. Antes deste rodízio de praias façam uma paragem na marisqueira o Perceve do Bruno Ricardo dos Reis Dias

Baía da Luz Resort

Com um menu repleto de iguarias preparadas com muito cuidado, qualidade e exigência, os preços são muito mais acessíveis do que seria esperado, dada a qualidade que ali é colocada na mesa. Destacamos a frescura e grande variedade de marisco: perceves, condelipas, gamba da costa, lapas, ostras, búzios, canilhas, bruxas, sapateira, entre outros… A carta de vinhos também merece destaque uma vez que foge ao óbvio e aposta em bons vinhos da região. 

Baía da Luz Resort

Para a estadia na praia da Luz sugerimos o Baía da Luz, a 10 minutos a pé da praia da Luz. Um resort ímpar numa vila graciosa carregada de memórias da vida piscatória, com o mar azul-turquesa como pano de fundo. Possui três piscinas, adequadas a todo o tipo os hóspedes: uma para adultos, a segunda para famílias e uma terceira indicada apenas para crianças (esta última vigiada). 

Baía da Luz Resort

Tem ao dispor apartamentos de luxo, elegantemente decorados e totalmente equipados, dispondo ainda de parque infantil, um campo de ténis e um bar. Ficamos alojados num apartamento com 2 quartos duplex com vista para o mar: provavelmente o melhor desta viagem (a par de outro que falaremos mais à frente ;)). Está decorado com muita elegância e os pisos são em madeira, apresentando todas as comodidades modernas que se esperam numa estadia num resort deste gabarito.

Baía da Luz Resort

Ao entardecer, podemos ainda deleitar-nos com a fantástica gastronomia italiana no restaurante Alloro (a critica fica para o ultimo capitulo desta #roadtrip2021). A 10 minutos de carro do resort Baía da Luz encontramos a povoação do Burgau, muito conhecida pela sua praia. Está situada no limite poente do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. O areal estende-se ao longo de uma pequena enseada que funciona como porto piscatório e onde ainda se praticam formas artesanais de pesca, sendo utilizadas artes como o alcatruz, a rede de amalhar ou o aparelho de anzol.  

Baía da Luz ResortPara lá chegar é necessário descer a localidade para encontrar uma rampa que vai dar à praia e ao porto piscatório, onde ainda estão os famosos e coloridos barcos tradicionais. Com sorte é possível observar o regresso de alguns desses barcos à praia carregados de peixe, que mais tarde podem ser saboreados nos restaurantes do Burgau. A disposição das arribas conjugada com a orientação do areal faz com que a praia do Burgau esteja protegida dos ventos e das intempéries, proporcionando banhos super tranquilos.

Juro-vos, perante o sal, que lá voltarei ;)