Sabores da Vida 2022 | O paradoxo do tempo
"Se o vosso médico não acha boa ideia que bebam vinho ou comam determinada carne, não vos preocupeis: encontrar-vos-ei outro que não terá a mesma opinião." Michel de Montaigne
Li há uns tempos no New York Times algo que me chocou. Que vivemos como estranhos, mesmo com aqueles que nos são mais próximos. Aqueles que mais amamos, com quem partilhamos um tecto, uma mesa, um vinho ou uma cama, teimam em permanecer misteriosos. Há alturas em que a vida desses desconhecidos se parece cruzar (e até fluir) com a nossa, no entanto, a esses momentos seguem-se outros de profundo afastamento. É por isso que pais, filhos, companheiros, irmãos e amigos, mais ou menos próximos, acabam por nos surpreender em algum aspecto/atitude/opinião. Há uma certa estranheza escondida dentro do que consideramos familiar.
Do mesmo modo, há algo de familiar escondido naquilo/naqueles que achamos estranhos. Quantas vezes ao falarmos com um "desconhecido" deixamos que as nossas vidas (inicialmente afastadas) se toquem, fazendo com que as perguntas, as respostas e as histórias nos permitam perceber os intrincados padrões daquilo que nos faz diferentes, e ao mesmo tempo, constatarmos indelevelmente os temas que nos aproximam?
Porque é que por vezes o familiar nos parece estranho, e o estranho nos parece familiar? A resposta tem a ver com o tempo e com a forma geométrica que este assume. Tem também a ver com o facto de sermos nós que criámos o nosso tempo, diariamente. Desde muito cedo que decidimos quando o nosso dia começa, e também quando termina.
Decidimos também as nossas pausas e os nossos ritmos. O nosso tempo é nosso, não de todos. Somente nosso. É apenas quando os nossos tempos se cruzam com os tempos de outra pessoa que a começamos a conhecer verdadeiramente. Mais, não basta que os tempos se cruzem, têm de se cruzar em quantidade e em qualidade. É na balança destes tipos de tempo que podemos ou não nos aproximarmos afectivamente de alguém.
Deste modo, parece simples tornarmos alguém mais familiar, basta sincronizarmos os nossos tempos. O problema é que essa sincronização bate de frente com um paradoxo: o paradoxo da forma do tempo. Para que percebámos este embate que nos dificulta a aproximação ao outro, seja este mais familiar ou mais desconhecido, temos primeiro de entender o que é este paradoxo.
A lógica diz-nos que o tempo só pode assumir, exclusivamente, uma de três formas: linear, cíclica ou circular. Assim, ou começa e termina (linear), ou se repete infinitamente (cíclica), ou não começa nem termina quase como um loop (circular). Esses três estados com que podemos conceber o tempo são mutuamente e forçosamente exclusivos, pois uma coisa que é linear não pode ser simultaneamente circular ou cíclica.
No entanto, a nossa experiência individual quotidiana diz-nos algo completamente diferente. Que o tempo pode ser cumulativamente linear, cíclico e circular. O tempo começa e termina todos os anos, do primeiro de Janeiro ao 31 de Dezembro. Esta é uma linha de tempo única mensurável, ou seja, o tempo parece ser linear.
Simultaneamente, o tempo passeia-se do Inverno para a Primavera, segue-se o Verão, depois vem o Outono, para depois regressar o Inverno novamente: uma autêntica cadeia de eventos, ou seja, o tempo parece ter também uma componente cíclica. Mas o tempo não se fica por esta segunda dimensão...
No nosso dia a dia também experimentamos o tempo como sendo circular, todos os anos começam no 1º de Janeiro, para acabarem sempre a 31 de Dezembro. Um loop infinito, passando sempre pelos mesmos meses, com a mesma sequência. Desta forma, a lógica diz-nos uma coisa (as formas do tempo não podem ser cumulativas), a nossa experiência quotidiana outra (as formas do tempo são cumulativas). Um paradoxo que aceitamos pacificamente sem nos questionarmos sobre as suas implicações.
Este paradoxo tem animado discussões na comunidade cientifica, e toda a gente parece ter uma opinião, sejam eles físicos, filósofos ou psicólogos. No entanto, não há consenso na resolução desta incongruência temporal. Afinal, não estamos apenas a discutir que forma do tempo tem impacto nas nossas amizades, mas também qual o seu efeito em temas mais fundamentais como a criação do universo.
Como físicos, temos que decidir se todo o nosso universo começou com uma singularidade, o Big Bang, que o faz estar em expansão contínua (tempo linear), ou se o Big Bang é um evento final em si mesmo. Ou então se o universo estará num ciclo mais longo de contracção-expansão: a teoria do universo pulsante (o tempo circular).
Apesar de ter um doutoramento em Física (deixem-me cá puxar dos galões), não é fácil argumentar acertadamente qual dos tempos o nosso tempo tem. Mas para mim, o debate da forma do tempo não deveria ser necessário ao nível dos afectos, dos sentimentos e daquilo que nos faz, verdadeiramente, humanos.
Do ponto de vista humano, das relações e do que nos faz sentir próximo de alguém, seja esse alguém um familiar ou um desconhecido, o tempo tem de forçosamente ser circular. Paradoxalmente, de novo, a ciência não nos é capaz de dizer em qual das formas o tempo se assume predominantemente, mas ao mesmo tempo, já provou que no domínio dos afectos esse tempo é circular.
Um grupo de investigação da Universidade do Kansas conseguiu quantificar o tempo que levamos a desenvolver uma amizade: 140 horas cíclicas!!! O estudo que envolveu mais de 500 participantes mostrou também que as melhores amizades surgiram depois de 300 horas cíclicas. Mas que unidade de tempo é esta, medida em horas cíclicas?
As horas cíclicas, metamoforizam o facto de não bastar apenas estar na companhia de alguém para nos amigarmos... É fundamental que as conversas ocorram ciclicamente, regressando quase em loop aos mesmos assuntos, às mesmas piadas, às mesmas histórias, a temas já previamente esmiuçados. Toda esta repetição, cria intimidade, proximidade e identificação.
De modo contrário, a conversa fiada e alternada, sem repetição, diminui a familiarização e aumenta a distância entre interlocutores. Apesar de todos os benefícios de ter amigos, nem sempre é fácil encontrar tempo para construir e manter relacionamentos. Um dos grandes privilégios da nossa infância é a quantidade de tempo não estruturado e repetitivo que passámos com todas as outras crianças e que nos ajuda a desenvolver amizades.
É nesta fase que nos deliciamos repetidamente com as mesmas histórias, sempre com o entusiasmo de uma primeira vez. Esta é uma autêntica mina de amigos, e é também por isto, que grande parte dos nossos amigos vem dos bancos da escola. Com o passar da idade (em média após os 25 anos), vamos perdendo esta capacidade de entrar no loop dos amigos, muitas vezes por sentirmos que não temos tempo para investir em velhas histórias que nos conduziriam a novas amizades, ou pelo menos reforçar os laços das antigas.
Por tudo isto que vos disse anteriormente, é muito importante que possamos criar espaço para esta autêntica economia circular dos afectos, para aquele tempo que alicerça velhas relações e potencia o surgimento de novas. Clive Staples Lewis, professor irlandês da Universidade de Oxford (e também da Universidade de Cambridge), defende que essas novas amizades surgem, quase sempre, após umas "palavras mágicas". São elas: "O quê? Tu também? Sempre pensei que fosse o único achar isso."
Se pensarmos bem, somos obrigados a concordar com Clive Staples Lewis, pois é quando duas ou mais pessoas se permitem descobrir o outro, que todas as dificuldades e hesitações semi-articuladas durante 300 horas elípticas ... se transformam numa visão comum, uma espécie de solidão partilhada, que vulgarmente denominamos por amizade.
E o que é que normalmente nos faz juntar com outras pessoas, para ouvir velhos relatos de conhecidos ou conhecer novas histórias de desconhecidos? A comida e o vinho, é claro!!! E é por tudo isto que esta "moldura científico-cultural" me pareceu extremamente pertinente para vos falar do Sabores da Vida 2022, curiosamente um evento que também foi pincelado em traços circulares. Já vos falo dele, mais à frente... (não sei se repararam mas estou a usar um esquema circular de repetição em loop para que fiquemos mais amigos :P).
Informal e criativo, o Alivetaste - Sabores da Vida, Cuisine & Wine Tasting Sunset é um momento ímpar de lazer que procura proporcionar o tal tempo de qualidade, circular, que permita a troca de experiências e contactos entre profissionais ligados aos vinhos, gastronomia, turismo e comunicação social.
Organizada pela Alivetaste, um dos portais de gastronomia, vinhos e turismo mais visitados em Portugal, a iniciativa deste ano contou com o apoio da Viniportugal, do Turismo do Porto e Norte e da Escola de Hotelaria e Turismo do Porto. Na sua sexta edição, o evento reuniu produtores de vinhos, chefs, directores hoteleiros, empresários da restauração, entidades académicas e institucionais relevantes nas áreas do vinho, gastronomia e turismo, bem como jornalistas e bloggers, nacionais e internacionais.
No total, estiveram presentes na edição deste ano 35 produtores de diversas regiões vinícolas do país, 20 chefs e 450 convidados, incluindo 10 profissionais da comunicação social internacional, oriundos de sete países. Entre os produtores participantes estiveram a Magnum - Carlos Lucas Vinhos (Dão), Symington Family Estates Vinhos (Douro), Quinta de São Luiz/ Sogevinus (Douro), Sociedade Agrícola e Comercial do Varosa (Távora- Varosa), Vilacetinho (Vinhos Verdes), Tulha & Ribeiro (Douro), Quinta do Carvalhão Torto (Dão), Quinta da Biaia (Beira Interior), Luís Leocádio Vinhos (Douro), Prior Lucas (Bairrada), Quinta S. José (Douro), Quinta da Capela (Douro), Quinta de Sant'Ana (Lisboa), Quinta de Soalheiro (Vinhos Verdes), Quinta das Bageiras (Bairrada), Quinta Serra d'Oura (Trás-os-Montes), Júlia Kemper Wines (Dão), Muxagat (Douro), In Culto (Douro), Regateiro Vinhos de Família (Bairrada), Quinta do Mondego (Dão), Esmero (Douro), Família Polido (Douro), Quinta das Cepas (Távora-Varosa), Monte da Penha (Alentejo), Ervamoira (Douro), Soito Wines (Dão), Quinta de Paços (Vinhos Verdes), Quinta de Monforte (Vinhos Verdes), Anselmo Mendes (Vinhos Verdes), Palato do Côa (Douro), Brejinho da Costa (Setúbal), Falua (Tejo), Santos Lima/Makro (Douro), e a Santos Lima/Makro (Algarve).
Responsáveis pelas criações gastronómicas que harmonizaram com os vinhos, participaram os chefs Rui Martins (Culto ao Bacalhau), Julien Montbabu (Le Monumental Palace), Mónica Pereira, Francisco Siopa (Penha Longa Resort), Carla Sousa (Sítio Valverde), Lígia Santos (Casas da Li), Júlio Pereira (Kouve by Chef Júlio Pereira), Tiago Carvalho (Tasca do Paiol), António Carvalho (Brasão), Duarte Eira (Salpoente), José Gil (A Taberna), Angélica Salvador (In Diferente), Tiago Bonito (Casa da Calçada), Renato Cunha (Ferrugem), Tony Salgado (Pestana Palácio do Freixo), António Vieira (Wish), e Arnaldo Azevedo (Restaurante Villa Foz).
Nos vinhos provados destaco o brioche, a amêndoa, a toranja, a tosta, o equilíbrio e a finesse do Murganheira Vintage 2011; a bonita cor salmão-rosada, o rebuçado de framboesa, a groselha, os arandos, as rosas, o chocolate branco, o cravo, as notas fumadas, a ligeira pedregosidade, a frescura, a persistência e o equilíbrio do São Luiz Winemaker’s Collection Tinto Cão Reserva Rosé 2021; a flor de laranjeira, limonete, folha de limoeiro, lima, pera, avelãs, cera de abelha, baunilha, frescura, mineralidade salgada, equilíbrio e untuosidade do Soito Encruzado Reserva Branco 2017; a noz-moscada, pimenta preta, frutos do bosque, violetas, menta, resina, equilíbrio, elegância e complexidade do Quinta de S. José Reserva Tinto 2016; e as nozes, amêndoas, figos secos, casca de laranja, canela e a acidez suculenta do Kopke 20 Years White Port.
Nas propostas gastronómicas, as minhas favoritas foram a simplicidade das Ostras de Vila do Conde (Tony Salgado); a frescura untuosa e alegre da Tarte de enguia fumada e beterraba (Julien Montbabu); a opulência decadente do Bacalhau confitado, xerém de algas, pil pil e coentros e a orientalidade do Atum dos Açores, chawanimushi de açafrão, tomate e gengibre (ambos de Tiago Bonito); o aconchego gastronómico d'A bola de sardinha na frigideira (Renato Cunha); o sabor a mar inspirador conciliado com textura algo gelatinosa e o ligeiro picante dos enchidos da Feijoada de Bacalhau à moda do Porto (Rui Martins); e a excentricidade ácido-adocicada do Curd de Yuzu , sorbet de alga codium, granizado de água ostra e pó de lima kaffir (Francisco Siopa).
Para além dos vinhos e da gastronomia, a sexta edição do Alivetaste esteve também vestida de inovação, ecologia e circularidade :P Assim, à festa deste ano acresceu o lançamento de uma nova marca de vestuário profissional para restauração e hotelaria que reutiliza subprodutos da vindima. A nova marca Harvest by Prochef incorpora resíduos gerados nos processos de vindima e vinificação, resultando num produto têxtil inovador, sustentável e alternativo ao couro animal denominado Invinotex.
Este novo tecido é resultado de uma parceria entre duas empresas, a têxtil Tintex e a vínica Soalheiro, ambas referencias no seu sector e localizadas no Minho. Esta cooperação permitiu à Tintex produzir e utilizar pela primeira vez pó de bagaço de uva nas suas formulações de revestimento dos tecidos, incrementando o leque de resíduos e subprodutos que actualmente utiliza (pó de cortiça, serrim e casca de pinheiro).
Foi engraçado perceber que neste mundo do vinho e da gastronomia, tal como no tempo, também tudo anda em círculos, desde as harmonizações, até às novas tendências (que parecem querer regressar às origens e ao foco no produto/terroir), passando pelo próprio vestuário para a restauração/hotelaria que nasce, literalmente, na vinha. Mas isso não foi o mais importante.
O que realmente importa é o facto que este evento foi capaz de combinar os ritmos temporais de diferentes pessoas numa direcção que coloca o vinho e a comida como elementos potenciadores da amizade e dos afectos. Serviu também para reforçar a ideia de que o próprio tempo (seja ele linear, cíclico ou circular) é a "moeda" mais valiosa, rara e universal que compartilhamos. Há que as saber gastar com quem as merece... ;)
Que esta circulatura do tempo nos volte a colocar, paradoxalmente e para o ano, de novo e mais uma vez, no Palácio do Freixo para o Sabores da Vida 2023.