Sal Poente & Moliceiro | Canto V, estrofe 100: As ondas da vida
"Porque o amor fraterno e puro gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o pros[s]uposto
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe, enfim, de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito:
Que, por esta ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço e sua valia." Luís de Camões, Os Lusíadas
Há uns anos aquando da participação no Encontro com o Vinho e Sabores Bairrada 2016, fiquei agradavelmente surpreendido com a harmonização proposta pelo restaurante Sal Poente de Aveiro, afamado pela sua especialização em bacalhau. Desde então que tinha a vontade de o conhecer um pouco melhor, e na planificação das visitas deste ano incluí-o nos prioritários. Enquanto preparava a visita com o Vasco Amaro, director do restaurante, surgiu o convite para conhecermos também o Hotel Moliceiro, um dos hotéis com mais carisma de Aveiro, melodiosamente pintado num cenário único de história, autenticidade e memória.
Aveiro é uma das minhas cidades favoritas e da qual guardo as melhores recordações. Abraçada à ria, Aveiro é uma cidade próspera com uma atmosfera jovem e energética. Um lugar adorável, berço dos moliceiros, dos ovos moles, das pontes jubonadas e dos pequenos canais pitorescos.
Chegamos ao Hotel Moliceiro a um sábado ao inicio da tarde. Mal se entra, somos imediatamente abordados pelo som subtilmente cativante, quase como um canto das tágides, sublimado, grandíloco e corrente do piano. A longa barra preta contrasta com as pinturas modernas na parede e as lâmpadas clássicas, transportando-o para uma nobre sensação de luxo e conforto.
Os quartos do Hotel Moliceiro, elegantemente decorados, oferecem na sua maioria vista sobre a ria e um design moderno pincelado com detalhes vintage, sinónimo de luxo e conforto requintado. O cenário é completado por cores quentes e um aspecto relaxante, que dão aos quartos superiores um toque aristocrata. Todos os quartos são diferentes, cada um com uma decoração especial, de modo a que este conceito permita oferecer ao cliente diferentes emoções num mesmo Hotel.
Depois de já estarmos agradavelmente instalados e de a Bia ter desarrumado tudo o que lhe era possível, descemos ao bar para saborear as boas-vindas do Hotel, ovos moles acompanhados por um cálice de vinho do Porto. Com um piano de cauda negra, neste bar, há música ao vivo todos os dias, criando uma atmosfera intimista de charme e romance.
Depois, era tempo de regressar ao objectivo inicial desta visita a Aveiro. (Re)conhecer o Sal Poente. Instalado mesmo em frente ao canal de São Roque, num edifício único que um dia foi um armazém de sal, exibe um ambiente rústico refinado e uma cozinha de autor, conceptualmente tradicional, determinadamente contemporânea.
O homem do leme é Duarte Eira, que antes de chegar a Aveiro passou pelo Hotel Régua Douro, Hotel Aquae Flaviae, Hotel Monte Prado & Spa e da Casa da Calçada Relais & Chateux. Duarte Eira foi ainda o vencedor da sétima edição do concurso “Revolta do Bacalhau” em 2011, um dos mais prestigiados prémios gastronómicos do nosso país.
As suas boas-vindas foram A Enguia em Escabeche, com enguia em crosta de Panko, escabeche e clorofila de salsa. Despertou os sentidos e preencheu o palato com a sua textura crocante e o seus sabores característicos a mar, vinagre e especiarias.
O avinagrado da enguia em escabeche ganhou expressão e companhia com a acidez e mineralidade do Colinas Rosé 2015. As cerejas, ameixa e morangos deram ainda uma certa irreverência à harmonização.
Antecedeu A Vieira e o Caviar, vieira corada, abobora manteiga, caviar e molho de queijo da serra. Tudo começa com uma vieira cozinhada no ponto, ornamentada com o sabor rico, salgado e ligeiramente doce do caviar. Depois, surgem a abobora e o queijo para complementar uma criação bastante fresca e complexa. O molho de queijo era intenso, no entanto o aroma a mar sobressaía, quase que procurando um complemento floral no vinho.
Encontrou-o no Royal Palmeira 2015, um loureiro um pouco tímido, mais elegante e com um nariz bem desenvolvido e complexo com aromas de lima, caramelo, menta, noz, fumo e um ligeiro toque a pão. Com um pouco mais de tempo no palato surgem ainda as frutas tropicais, uma pitada de cremosidade e um toque de maçã.
Já conhecem (ou deviam conhecer :P) a minha paixão por foie gras, no entanto continuo a ser surpreendido pela multivalência deste ingrediente. No prato seguinte, Foie Gras, escalope de foie gras, terrine de rabo de boi, cebola balsâmica e molho de vinho do Porto, promoveu um pano de fundo meloso, rico e guloso. O rabo de boi estava muito intenso e superiormente reduzido, no inicio sobrepondo-se ao resto, mas depois o foie gras impõe-se e desperta todos os diferentes aromas do prato. Todo este exagero untuoso é equilibrado pela cebola balsâmica cuja acidez prolonga um pouco o sabor. O molho de vinho do Porto faz uma ponte vínica duriense com o Quinta do Noval Labrador Syrah 2015.
Com ele o prato ganha expressão, especiarias, chocolate, alcaçuz, cereja e mirtilos. Um vinho muito suave, vibrante e equilibrado. A viagem pelos sabores do chefe Duarte Vieira continuou com A nossa versão de feijoada de sames, lombo de bacalhau confitado, estufadinho de sames com chouriço de barrancos, puré de feijão branco e creme de feijoada aromatizada com cominhos.
Cozinhado durante horas, exibe um sabor a mar inspirador que é conciliado de maneira muito original com o crocante da sames de bacalhau, com a frescura dos cominhos e com o ligeiro picante do chouriço. O feijão da-lhe corpo, o crocante de "torresmos de bacalhau" da-lhe alma. Uma obra prima de texturas, influências, sabores e sobretudo memória.
Exigia a presença de um vinho com taninos polidos, carnudo mas equilibrado, como o Colinas Bairrrada Reserva Tinto 2010. No palato este vinho passeia em modo diva, complexo com azeitona, cereja, ameixa, groselha, notas vegetais verdes e eucalipto. É um vinho insinuante, com classe e ... delicioso.
Depois de ter saboreado uma refrescante esfera de mojito como corta sabores, tive a oportunidade de conhecer um espaço mais recatado e intimista do restaurante. Em estilo mezanino, é uma bonita invocação à grandeza do Portugal dos descobrimentos, ao Portugal do mar, ao Portugal dos nossos antepassados. É o local ideal para celebramos a vida, as conquistas e os amigos do presente.
O lombinho de Vitela Marinhoa e a trufa preta, corado com risotto de cogumelos aromatizado com azeite de trufa, laminas de trufa e legumes surgiu na mesa momentos depois. Antigamente este animal eram utilizado para lavrar os terrenos, puxar pesados baldes água dos poços e para carregarem as redes dos pescadores. Hoje em dia, nestes trabalhos mais duros foram substituídas por tractores, e a vitela passou a ser utilizada na gastronomia regional. Esta tinha uma suculência, uma suavidade e um sabor incríveis. Mas tinha mais, tinha um acompanhamento divinal.
O risotto bastante cremoso pincelava o prato com uma frescura extraordinária. As trufas tornaram-no mais elegante, requintado e complexo. Um prato rico e apurado que combinou na perfeição com a delicadeza do Dom Bella Tinto 2013. Frutos do bosque, violetas, amoras, pimenta, cravinho. É subtil, é elegante, é longo, é o Dão.
Como sobremesa, O céu e os Ovos Moles, as natas guarnecidas com ovos moles, frutos vermelhos e gelado de framboesa. O pó de bolacha funcionava como elo de ligação entre os ovos moles e o gelado. O gelado falava com a framboesa, e a framboesa interagia com as natas. Escondida e tímida estava uma framboesa "açucarada" cujo sabor, textura e energia ainda hoje me fazem pensar nela :-P
Os frutos vermelhos ligaram o prato ao Quinta das Bágeiras Bruto Natural Rosé 2015, de uma maneira muito interessante. Inicialmente subtis no vinho, cresceram com a frescura e carácter da Baga. Surgiram ainda a amêndoa e uma ligeira sensação a mel que mandou a atenção do palato de volta para os ovos moles. Uma harmonização com terroir, fiel às origens, muito dinâmica e bem conseguida.
Esta sobremesa é também um símbolo daquilo que melhor se faz no restaurante. A história, a tradição, a memória, a paixão, o amor pela cidade, a vontade de estar com os amigos, o sabor; materializados em criações gastronómicas com evidente alma de cozinha de autor. Durante todo o jantar fomos sempre muito bem tratados (não apenas nós mas todas as pessoas que se encontravam no restaurante) e um bom exemplo disso foi a incessante quantidade de livros postos à disposição da Bia para que se fosse mantendo entretida, depois de ter devorado um prato de massa esparguete :-P
Do Aprender as cores que a Bia adorou para os Lusíadas de Luís de Camões que encontrei no Moliceiro. Mais concretamente para o final do canto V. Na sequência da aparição do Adamastor na noite de 21 para 22 de Novembro de 1497. Muitos interpretam este canto como uma reflexão sobre a falta de identidade do Portugal presente, eu penso o contrário, para mim metaforiza a grandeza do Portugal dos descobrimentos.
Um povo pequeno na dimensão mas grande na alma, que cumpriu ao longo da sua História, a missão de transmitir os seu valores, as suas crenças, os seus costumes e também a sua gastronomia. Abriu novos mundos ao mundo, e mostrou que mantendo-nos fieis às nossas origens, fomos capazes de concretizar um sonho.
Esse amor fraterno e puro gosto de cantar as virtudes da terra a que pertencemos, encontrei-o também em Aveiro, no Sal Poente e no Moliceiro, e acho que é isso mesmo que os revestem de um carisma muito próprio. Não só por isto, mas também por isto, obrigado Vasco Amaro (Sal Poente) e Cristina Durães (Moliceiro) por nos terem proporcionado este fim-de-semana incrível em Aveiro.
Esse amor fraterno e puro gosto pelo que fazem, nunca perderá o seu preço nem a sua valia, por muito exigentes que sejam as ondas desta vida.
Estes foram retratos dos momentos que, de hoje em diante, me farão confundir a vossa cidade com o amor materializado na arte de bem receber, com carinho, com história, autenticidade e sentimento de pertença.