Soito Wines | A mineralidade e as Serras
"E pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas! … Tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: «óptimo!… Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia!»" Eça de Queiroz
Pensem na vossa comida favorita. Não, a sério, pensem mesmo sobre isso ou o vosso ecrã desliga e bloqueia durante 10 minutos e quando o ligarem levam com um discurso do Ventura ;) Fechem os olhos e pensem em todo o processo de tentar adivinhar o sabor, pegar, morder, mastigar, provar e engolir algo delicioso. Muito bom, certo? Agora pensem na vossa comida favorita enquanto eram crianças. É a mesma? Provavelmente não. Agora, o oposto, pensem na vossa comida menos favorita. Algo que vocês nem conseguem suportar a ideia de a aproximar à vossa boca selecta. Essa abominável comida mantém-se a mesma desde a infância? Por acaso há alguma hipótese da vossa comida mais favorita nos dias de hoje ser a menos favorita de quando eram mais pequenos?
As crianças têm preferência natural pelos doces, herdada da lactose do nosso primeiro alimento, o leite materno. Verduras? Muito difícil gostarmos enquanto somos pequenos (a Bia é uma excepção). Os mais velhos adoram pimenta, atracção essa que resulta do facto de com o avançar da idade irmos perdendo cada vez mais receptores de paladar, necessitando de sabores mais fortes, como a pimenta, para sermos capazes de os detectar.
Aquele arrepio desagradável que sentia-mos quando a nossa mãe nos colocava à frente uns bróculos tem nome: neofobia alimentar, ou seja, o medo em experimentar um sabor novo. É uma protecção natural do nosso organismo contra possíveis alimentos venenosos, herdamos estes "sensores" dos nossos antepassados caçadores-colectores Homo Sapiens. Comer o "conhecido" (por favor não coloquem conotações sexuais onde elas não existem ;)) era seguro e assegurava a nossa existência, provar sabores desconhecidos era jogar à roleta-russa antes da Rússia ter nascido. É também por isto que o nosso gosto por vinhos surge mais tarde, quando já conseguimos distinguir o amargo bom do amargo mau.
Mas, com o tempo, prática e conhecimento, todos aprendemos a gostar de novos sabores. Esta transição, para mim resume-se num alimento: favas ;) Anteriormente detestadas e motivo de choradeira, hoje são motivo de salivar incessante. Se forem combinadas com chouriço e uma boa carne de vitela, perfeito. Mas antes das favas vou-vos falar de uns vinhos que têm conquistado fãs, a um ritmo que só a paixão consegue explicar, a Soito Wines. Foi criada em 2013 por Sandra e José Carlos Soares (2 professores, a profissão mais nobre de todas ;)), e já conquistou troféus nacionais e internacionais, tendo até sido distinguida como um dos produtores mais incontornáveis do Dão. Tudo isto, indícios de que algo de muito sério está a ocorrer com estes vinhos.
Situada entre Nelas e Mangualde (Tibalde), a Soito Wines é composta por um projecto de agroturismo, uma casa com inúmeras actividades vínicas e de lazer, uma Adega de última geração construída pelo arquitecto Perdigão (também produtor de vinhos) e duas quintas (Cabeço da Roda e Soito). A minha visita "palateana" a esta Quinta começou pelo Soito Rosé 2017 (10€, 86 pts.). Elaborado a partir de Alfrocheiro, Tinta Roriz e Touriga Nacional traja uma cor rosada intensa, límpida e cristalina e transporta no nariz cerejas, morangos e alguma mineralidade. Na boca é muito fresco, intenso e surpreendentemente bem estruturado, ideal para acompanhar umas peças de sushi. Não é um simples rosé "de piscina"...
Resultante de uma vinificação clássica com fermentação a temperatura controlada (16ºC durante 3 semanas) e com estágio parcial em barricas de carvalho Francês com batonnage durante 6 meses o Soito Encruzado Reserva Branco 2017 (20€, 89 pts.), de cor amarelo palha com ligeiras nuances esverdeadas, exibia notas florais bastante ricas (flor de laranjeira e limonete), folha de limoeiro, lima, pêra, aromas minerais a granito molhado e apontamentos mais suaves de baunilha, resultantes da madeira bem integrada. No palato é muito fresco, mineral (quase a chegar ao salgado), equilibrado e ligeiramente untuoso.
Para acompanhar as Favas, chouriço e vitela estufada (feitas, e muito bem, pela minha sogra), terror da minha infância, e prazer absolutamente delicioso da juventude em que me encontro (:P) escolhi o Soito Reserva Tinto 2015 (30€, 94 pts.), uma das melhores harmonizações do "cá por casa". A vinificação deste vinho é feita em lagar com maceração pelicular suave, a sua fermentação é controlada a 26ºC durante 8 dias e o estágio é feito em barricas de carvalho francês durante 12 meses, o resultado é um vinho enorme. Sei que às vezes exagero nos adjectivos, mas aqui são inteiramente justos. De cor vermelha romã, carrega notas saborosas (estou a salivar enquanto escrevo) a amoras pretas, ameixa madura, mirtilos, resina picante, caruma, couro, alcaçuz, pimenta e canela.
Na boca, este lote com Touriga Nacional, Alfrocheiro e Tinta Roriz é denso, complexo, equilibrado, harmonioso e com taninos tão abundantes quanto elegantes. Que delícia!!! ;) Adoraria voltar a conversar com ele daqui a uns anos.
É numa rústica e bucólica paisagem que a Quinta do Soito se esconde, entre as Serras da Estrela e do Caramulo, pronta a ser descoberta. Com cerca de 10 hectares, dos quais cerca de 7 de vinha, esta quinta parece ter nos seus solos de granito a sua característica mais diferenciadora.
A combinação deste tipo de solos, com as condições climatéricas do Dão e a utilização das castas autóctones da região confere aos vinhos uma mineralidade "molhada" deliciosa. A juntar a esse terroir privilegiado há ainda a elegância, leveza, subtileza e palato aveludado dos vinhos Soito, que os tornam únicos, genuínos e impactantes. Gostei muito, pela intensidade e originalidade do rosé, pela classe do Encruzado e pela complexidade e enorme alma do Reserva. Nota ainda para a qualidade das garrafas e originalidade das rolhas.
Favas, chouriço e vitela estufada:
-Fazer um refugado com azeite, cebola e um dente de alho.
-Juntem 4 tomates frescos maduros e partidos aos bocados, caldo da cozedura de uma galinha e cozinhem durante 10 minutos;
-Acrescentem a vitela e deixem cozer em lume brando durante uma hora;
-Coloquem as rodelas de chouriço e cozinhem durante mais 10 minutos;
-Coloquem as favas e cozinhem durante quinze minutos.