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No meu Palato

No meu Palato

Spatia Comporta | Silêncio, que se vai contar um fado

“O ser humano é aquele que nomeia, e por aí reconhecemos que pela sua boca fala a língua pura. Toda a natureza, na medida em que se comunica, comunica-se na linguagem, e assim, em última análise, no ser humano.”  Walter Benjamin

Spatia ComportaJohn Cage, compositor norte-americano, tão excêntrico quanto genial,  revolucionou a história da música ao defender que o silêncio é, ele próprio, som. A sua obra mais célebre, 4’33”, consiste em quatro minutos e trinta e três segundos de absoluto nada: o intérprete senta-se diante do piano e… não toca.

Spatia Comporta

O público, incrédulo, ouve o ranger das cadeiras, a tosse discreta de alguém na fila de trás, o bufar do ar condicionado. A grande revelação? O silêncio não existe. O mundo nunca se cala. E, nesse espaço entre o que não é dito, escutámo-nos a nós próprios. Do ponto de vista musical, 4’33” foi um murro na mesa, ou melhor, um murro no tempo. Cage obrigou-nos a repensar o que é som, o que é ouvir, e o que significa estar presente. A cultura ocidental, dominada por melodias, harmonias e virtuoses, viu-se confrontada com uma nova arte da atenção. A pausa passou a ser também protagonista.

Spatia ComportaMas o silêncio que Cage nos propõe não é apenas estético. É também umbilicalmente científico. Numa câmara anecoica (sem eco), onde teoricamente nada ressoa (apenas -20.6 decibéis dB, sendo esse o recorde actual do Guinness Book para o silêncio), ouvimos os batimentos do nosso coração e o zumbido do nosso sistema nervoso.

Spatia ComportaAssim, o nosso corpo, esse instrumento inquieto, não conhece o silêncio absoluto. E é talvez por isso que há lugares que nos perturbam tanto: porque nos devolvem a escuta interna. Porque nos obrigam a parar.

Spatia Comporta

A Comporta é um desses lugares...

Spatia ComportaAqui, o silêncio tem textura. Vibra com o vento nos pinheiros, com o voo dos estorninhos, com o som ritmado dos nossos próprios passos sobre a areia fina. E é nesse campo magnético de calma que se instala o Spatia Comporta: não como um intruso, mas como um cúmplice.

Spatia ComportaUm lugar onde o luxo não se impõe, sussurra. Onde a arquitetura respeita o território, e onde até os cheiros (a alecrim, a madeira, ao sal que vem na brisa) parecem escolhidos com parcimónia.

Spatia ComportaA importância do silêncio, ou da tranquilidade, no bem-estar humano é hoje sobejamente documentada. Reduz os níveis de cortisol, melhora o sono e reequilibra o sistema nervoso autónomo.

Spatia ComportaMas para além dos artigos científicos, há uma sabedoria intuitiva nisto: quando estamos num sítio verdadeiramente calmo, sentimos o corpo a ceder, a descontrair, como se se lembrasse de quem é.

Spatia ComportaFoi exactamente isso que nos aconteceu num fim de semana no Spatia Comporta. Sim, o silêncio só foi interrompido por uma Bia em modo narradora oficial e um Gui especialista em decibéis. Ainda assim, essas pequenas ondas sonoras pareceram integrar-se harmoniosamente no ambiente. Quase música concreta, como diria o próprio Cage.

Spatia ComportaO alojamento surpreende pela sua sobriedade elegante. Tudo respira leveza: as linhas simples, os materiais orgânicos, a luz natural a entrar em todos os ângulos certos. Os quartos são silenciosos (mesmo com crianças), e as varandas privadas fazem-nos sentir parte da paisagem. Nada é ostensivo. Tudo está onde deve estar.

Spatia ComportaO Spatia Comporta oferece várias tipologias de alojamento: desde quartos amplos em formatovilla (onde ficámos instalados e que recomendámos vivamente) até suites com zonas de estar, pensadas para proporcionar conforto sem peso. Há uma coerência estética transversal: madeira clara, tecidos naturais, janelas generosas. Tudo isto transmite a sensação de casa de férias idealizada, mas com todos os luxos de um hotel boutique.

Spatia ComportaNo interior, cada detalhe parece ter sido escolhido com um objetivo claro: convidar ao descanso. As camas são vastas, com lençóis de algodão macio e almofadas que abraçam. A casa de banho, com duche ao nível, banheiras panorâmicas,  do chão e amenities de qualidade, tem uma luz que quase nos faz esquecer que não estamos num spa.

Spatia ComportaNo exterior, cada unidade tem o seu espaço reservado, seja um pequeno terraço com cadeiras de madeira, seja um alpendre rodeado de pinheiros. É como estar sozinho sem estar isolado: um luxo raro em tempos de pressa colectiva.

Spatia ComportaOs hóspedes têm à disposição uma piscina ampla, rodeada de camas de descanso e som ambiente cuidadosamente seleccionado (ou quase imperceptível, o que é ainda melhor). Há ainda uma zona de bar, bicicletas disponíveis para explorar os trilhos da região e um conjunto de percursos pedestres que nos leva a descobrir as dunas, os campos de arroz e até o silêncio das cigarras.

Spatia ComportaMas é no restaurante Ora que, quanto a nós, o Spatia atinge a sua maior sofisticação. Liderado pelo jovem e talentoso Chef Afonso Carvalho, o espaço oferece uma carta curta, mas cheia de identidade, onde a tradição alentejana é reinterpretada com técnica e sensibilidade contemporânea.

Spatia ComportaO jantar foi uma verdadeira viagem sensorial. Começámos pelo couvert, que já anunciava intenções sérias: pão de massa mãe ainda morno, manteiga de tomate seco, uma deliciosa banha de porco fumada com compota de cebola, e um azeite que pedia respeito. Seguiram-se os croquetes de borrego e a surpreendente Bola de Berlim de polvo: uma criação ousada e deliciosa, que já justifica a visita.

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A Cabeça de xara com pão brioche e manteiga de amêndoa e laranja foi outro momento alto, com sabores ricos, mas equilibrados, sem disfarces. A Açorda de carabineiro confirmou o talento do Chef para respeitar o produto e deixá-lo brilhar com um toque de sofisticação.

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O prato principal, uma Carne de porco à alentejana com mil-folhas de batata em vez da batata frita tradicional, revelou-se um verdadeiro tratado de sabor. A batata crocante em camadas finíssimas elevou o prato a um patamar inesperado, provando que inovação e memória podem partilhar o mesmo prato.

Spatia ComportaAs sobremesas merecem capítulo próprio, mesmo para quem, como eu, não é de doces. O Sabores da Comporta, um gelado com sabor a cogumelos selvagens, caramelo de pinheiro e pó de algas, foi talvez o melhor momento da noite. Um exemplo perfeito da filosofia do Chef: pegar na paisagem e transformá-la em sabor. Um prato conceptual, nada consensual, mas absolutamente delicioso.

Spatia ComportaAinda houve espaço para o tradicional Bolo de rosas típico de Grândola, apresentado com elegância e sem excessos. Uma doce homenagem à região e ao receituário que a inspira.

Spatia ComportaO pequeno-almoço pode ser tomado no restaurante ou no conforto do quarto. Optámos por esta última opção e a escolha revelou-se certeira. Uma bandeja cuidadosamente composta, com espumante, ovos mexidos e Benedict, pastelaria variada, queijos e charcutaria, fruta fresca e sumos naturais. Tudo fresco, saboroso, servido com um sorriso.

Spatia ComportaO almoço, mais descontraído, trouxe pratos criativos mas acessíveis. Destaco a Salada de burrata com tomate cereja, melancia e frutos secos (pistácio, amêndoa, amendoim), os Pastéis de cação e amêijoa, e o Kebab de porco. Para sobremesa, houve Migas doces com caramelo, laranja, nozes e canela, uma espécie de abraço quente, e um Trifle de requeijão, doce de leite, biscoitos e morangos, que desapareceu mais depressa do que o tempo que demorámos a decidir se era para dividir.

Spatia ComportaPara os mais pequenos, a cozinha mostrou-se flexível e generosa: um Lombo de garoupa, uma Bolonhesa de carne e um Fondant de chocolate com gelado de topinambur e baunilha. Nada ficou no prato, o que vindo dos nossos especialistas juniores, é o mais elevado dos elogios. Destaque ainda para o serviço, atencioso mas nunca intrusivo, e para os vinhos da região, apresentados com conhecimento e naturalidade. 

Spatia ComportaNo centro de tudo está o Chef Afonso Carvalho. Natural de Coimbra, apaixonou-se pela cozinha ainda jovem, influenciado por personalidades como Anthony Bourdain e Gordon Ramsay. Com formação em produção alimentar e experiência em cozinhas de renome como o Geranium (Copenhaga), o Chef Afonso alia técnica e intuição numa cozinha que é, acima de tudo, emocional. A sua ligação à terra nota-se em cada prato. Há ali memória, mas também vontade de surpreender. É um Chef que cozinha com cabeça, coração e geografia. E é, sobretudo, alguém que entende que o luxo gastronómico não está no excesso, mas na intenção.

Spatia ComportaApesar da sofisticação do espaço, nunca sentimos que estávamos a mais com crianças. Muito pelo contrário. Há espaços amplos para correr, uma piscina convidativa, bicicletas disponíveis, e uma equipa sempre pronta a ajudar. A Bia e o Gui aprovaram com entusiasmo (e com os respectivos comentários sonoros em estéreo).

Spatia ComportaJohn Cage deixou-nos um legado sobre o silêncio, legado esse que é essencial para que a música exista. O mesmo se pode dizer da vida: sem pausas, sem espaços para respirarmos fundo, sem nos escutarmos, tudo se torna ruído. A Comporta é, nesse sentido, uma partitura bem escrita e o Spatia um dos seus mais belos compassos.

Spatia ComportaÉ onde o tempo abranda, onde o paladar se afina, onde o corpo e a mente voltam a dançar no mesmo ritmo. E sim, mesmo com os risos da Bia e os mergulhos do Gui, o silêncio manteve-se. Não como ausência de som, mas como presença plena.

Spatia ComportaPorque o verdadeiro luxo, no fundo, talvez seja esse: conseguir ouvir...