The Yeatman Christmas Wine Experience 2022 | O Natal escondido num passo de dança
“Este foi o Natal mais maravilhoso que já tive. Estávamos nas trincheiras na véspera de Natal e, por volta das 20h30, os tiros quase que se silenciaram. Então os alemães começaram a gritar para nós «feliz Natal» e também a colocar muitas árvores de Natal com centenas de velas nos parapeitos das suas trincheiras.” Capitão Leon Harris, do 13º Batalhão do regimento de Londres, 1914
Numa noite gelada, escura e estrelada de 24 de Dezembro estava prestes a acontecer um milagre, e não, não estou a falar do nascimento do menino Jesus em Belem, antes sim, de uma outra noite, 1914 anos depois, em Ypres, na Bélgica. Os soldados britânicos e franceses, primeiro, começam a perceber que os alemães estavam a diminuir a intensidade dos disparos, a noite torna-se mais silenciosa, até que começam a ouvir primeiro “O, Holy Night”, e depois o “God save the King”.
Nas trincheiras britânicas começam a surgir teorias para estes estranhos acontecimentos. Terão os alemães enlouquecido? Estarão bêbados? Será uma manobra de diversão premonitória de uma emboscada? Na busca de mais informação, alguns soldados Aliados erguem as cabeças para fora das trincheiras (pela primeira vez em semanas), tentam focar as trincheiras adversárias (tarefa difícil devido à noite escura) e o que veem fazem-nos coçar os olhos de tanta surpresa.
Começam a erguer-se árvores de Natal iluminadas com velas nos parapeitos das trincheiras alemãs. Depois, um grito interrompe este clima misterioso: "Se você não dispararem, nós também não disparamos”. A medo, ambos os lados prometeram não disparar durante 24 horas, para celebrar o Natal de copo de vinho na mão.
Este bonito acontecimento ficaria conhecido na história como "A Trégua de Natal", um cessar-fogo breve e espontâneo que se espalhou pela Frente Ocidental no primeiro ano da Primeira Guerra Mundial. Passou também a ser um símbolo da paz e da boa vontade para com os humanos, muitas vezes ausente não apenas na frente de batalha, mas na nossa vida quotidiana.
É hoje historicamente aceite que os soldados rivais chegaram mesmo a trocar vinho, cigarros, pão e presunto, em plena guerra, na véspera de Natal de 1914. Muito menos importante do que tudo o que disse anteriormente, a "A Trégua de Natal" é também uma daquelas ocasiões em que melhor se percebe a importância do vinho, não só nos momentos de celebração mas também em todas aquelas outras dimensões que fazem de nós humanos: a partilha, a confraternização, a união, os afectos.
25 anos depois, na segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, então primeiro-ministro do Reino Unido, reforça essa ideia ao referir aos seus soldados num discurso motivacional que "não é apenas por França que estamos a lutar, fazemo-lo também por Champagne!!!" Curiosamente, nesta segunda Guerra Mundial ocorre também uma trégua de Natal, bem menos mediática e também com menos participantes. (Para lerem coisas que já toda a gente sabe, estariam a ler outros blogues, não é verdade? :P)
Essa é a história de Fritz Vincken, um jovem alemão de 12 anos, que se mudou com sua mãe para uma pequena cabana na floresta de Huertgen, na Alemanha, logo após a sua cidade natal, Aachen, ter sido parcialmente destruída numa ofensiva americana. Mesmo na floresta, Fritz e a mãe continuavam a ouvir o incessante estrondo dos canhões de guerra, o barulho ensurdecedor dos motores dos aviões que sobrevoavam continuamente a zona, e à noite, e encandeavam-se com os holofotes que perfuravam a escuridão na busca por inimigos.
Na véspera de Natal de 1944, Fritz e a sua mãe ouviram alguém a bater na porta de sua casa: eram três soldados americanos, um deles, muito jovem e gravemente ferido. Apesar de não falarem a mesma língua, Fritz e a mãe deram-lhes abrigo, conforto e comida quente. Enquanto comiam tentando comunicar com sons e gestos, ouviram de novo alguém a bater na porta. Seriam mais soldados americanos? Na verdade eram soldados, mas ... alemães!!!
Fritz gelou de medo pois sabia bem que abrigar soldados inimigos constituía uma alta traição à pátria e que resultaria, inevitavelmente, em fuzilamento. Os soldados alemães informaram-no que precisavam de abrigo e comida pois haviam-se perdido do seu batalhão. A mãe de Fritz surgiu então à porta e disse: "Claro que podem entrar, descansar, aquecerem-se e ter uma refeição quente até a panela ficar vazia. Serão tratados como família. Mas, aviso-vos que temos outros três convidados, que vocês poderão não considerar amigos. É véspera de Natal e não quero um banho de sangue aqui".
Percebendo que não tinha convencido completamente os soldados alemães, a mãe de Fritz acrescenta que "vocês poderiam ser meus filhos, e eles também. Há um menino, apenas isso, um menino com um ferimento de bala, a lutar pela vida no sofá da nossa sala, e seus dois amigos, tão perdidos como vocês, tão famintos quanto vocês, tão exaustos quanto vocês, encontraram conforto nesta casa. Nesta noite, especialmente nesta noite, véspera de Natal, vamos esquecer o que nos separa e comemorar o que nos une".
Logo depois um dos soldados alemães retirou da mochila uma garrafa de vinho (de novo o vinho) e outro um pão de centeio dizendo "vamos lá então celebrar o Natal com esses ca***** dos americanos, até amanhã não há inimigos". No dia seguinte, despediram-se e cada grupo seguiu a direcção do seu batalhão. Se quiserem saber um pouco mais desta história podem encontra-la, na integra, aqui.
Mais uma vez, o vinho uniu aquilo que a bala separou. E quando pensamos em Natal, vinho e celebração, o que é que surge imediatamente nas nossas cabeças? Na minha, a resposta é quase um reflexo de Pavlov: O Christmas Wine Experience do The Yeatman é claro ;) Evento que na edição deste ano contou com um Tawny (vai ter 100 pontos no blogue) que resultou de uma selecção de vinhos raros envelhecidos em madeira nas caves Taylor’s, alguns dos quais desde a altura destas duas guerras.
A experiência gastronómica deste ano foi alargada com a presença de alguns dos petiscos mais renomados da cidade, como o presunto da Casa Ibérica, ou as Ostras da Madrepérola, preparadas ao momento, entre outras propostas do Chefe Ricardo Costa para confortar o palato. Por falar em ostras, o Quinta de San Joanne Espumante Grande Reserva Brut Nature 2011 (30 €, 91 pts.) com as suas notas a pão tostado, lima, laranja cristalizada, pinho, pedra molhada e austeridade fina foram a harmonização perfeita.
Nessas inúmeras propostas gastronómicas, a que mais gostei foi o conforto, a generosidade e a riqueza das Tripas à moda de Gaia, acompanhadas pela ameixa vermelha, pimenta preta, sous bois, resina, tabaco, pujança, equilíbrio, complexidade e elegância do Quinta da Gaivosa 2019 (40 €, 93 pts.). É claro, que também haviam as iguarias típicas da quadra, como o buffet de queijos e enchidos e a vasta selecção de sobremesas, chocolates, bombons e trufas, da autoria da equipa de pastelaria de hotel.
Mas, como já vem sendo tradição, no Christmas Wine Experience 2022, as estrelas foram mesmo os vinhos apresentados na primeira pessoa pelos produtores e enólogos, numa selecção exigente, cuidada, e pensada em parceria com a directora de vinhos do The Yeatman Elisabete Fernandes.
Nos brancos destaco a toranja, avelã, algas, pedra molhada, sílex, untuosidade, frescura e austeridade do Listrão dos Profetas “Vinho do P. Santo” 2020 (55 €, 92 pts.); a toranja, flor de limoeiro, pedra partida, pureza, intensidade e incrível acidez do Valados de Melgaço 5º aniversário Grande Reserva 2016 (40 €, 93 pts.); os espargos, maracujá, baunilha, mineralidade pedregosa, frescura e salinidade do Vicentino Reserva Branco 2020 (21 €, 90 pts.); e a toranja, flor de limoeiro, flores silvestres, frescura, equilíbrio e complexidade do Scala Coeli Reserva Branco 2020 (Viosinho) (35 €, 92 pts.).
Nos tintos gostei muito dos frutos silvestres, framboesas, pinho, violetas, esteva, pimenta preta, elegância, ponderação e equilíbrio do Quinta da Romaneira Reserva 2017 (50 €, 94 pts.); da ameixa preta, arandos, violetas, baunilha, caixa de tabaco, cedro, perigosidade, intensidade, concentração e complexidade do Bulas Grande Reserva 2011 (45 €, 92 pts.); e dos frutos silvestres, ameixa seca, esteva, tinta da China, pedregosidade, taninos carnudos, complexidade, estrutura, persistência e finura do Quinta Nova Vinha Centenária - Ref P29/P21 2019 (90 €, 95 pts.)
Passando para os Madeira (em menor número e qualidade que em anos anteriores), destaco o Barbeito Single Harvest 2008 Meio Seco (25 €, 92 pts.) e a sua resina, damascos, compota de limão, telha de amêndoa, chá Earl Grey, frescura e acidez; o Blandy's Malmsey 2007 (50 €, 93 pts.) e o seu marmelo, compota de pêssego, casca de laranja cristalizada, noz, frescura e acidez equilibrada; e o Barbeito Malvasia-Cândida Reserva Especial (80 €, 94 pts.) carregado de melaço, avelãs, amêndoas torradas, caramelo e uma boca super equilibrada.
Passando para os Porto, começo com três deste mundo para depois vos falar de um vinho de outra constelação :P O Taylor´s Vintage 2003 (150 €, 99+ pts.) estava cheio de café, café, baunilha, chocolate, caixa de tabaco, ameixas secas, cerejas, uvas passas, pimenta preta, taninos refinados e precisão (apesar de ainda estar aí para as curvas, este vinho já dá um enorme prazer na prova com a mistura dos aromas primários com os terciários); por sua vez o Fonseca Guimaraens Vintage 2001 (100 €, 95+ pts.) exibia um bouquet muito bonito (e pronto, acredito que não melhora muito mais) com ameixa seca, cacau, bolo de noz, canela e uma acidez que equilibrava todo o conjunto; e o Graham’s Single Harvest 1997 (130 €, 96 pts.) que mostrava uma combinação incrível entre a fruta (ameixa, uvas passas e figos) e as notas da barrica (baunilha, caramelo, mel, amêndoas, noz, charuto, café e maçapão), isto para além de uma frescura, complexidade e equilíbrio notáveis.
De uma galáxia distante chegou-nos o Taylor's Very Very Old Port (800 €, 100 pts.). É a mais recente de uma série de edições limitadas de Vinhos do Porto excepcionais e muito raros extraídos das reservas de vinhos velhos envelhecidos em casco da Taylor’s. Esta obra de arte em forma de vinho é um dos lotes mais antigos lançados até hoje. É elaborado a partir de uma selecção de vinhos raros envelhecidos em madeira nas caves Taylor’s, alguns dos quais do espaço temporal que separa as duas guerras que vos falei no inicio, e que atingiram uma concentração que faz deles uma quintessência mágica.
De côr ambar escura, densa e cristalina, exibe um nariz maravilhoso com crème brûlée, figos secos, compota de pêssego, bolo de laranja, flor de limoeiro, maçapão, café, baunilha, cardamomo, canela, pimenta preta, resina, equilíbrio harmonia, elegância, largura, profundidade, precisão, complexidade, frescura e requinte.
Martha Graham referiu acerca do bailado que há nele uma irreverência, uma força vital, uma energia, uma aceleração, que é traduzida através do dançarino em acção, e porque cada dançarino executa os seus passos de um jeito muito próprio, apesar do guião predeterminado, essa expressão é única e irrepetível, uma autêntica expressão da linguagem escondida da alma. Há qualquer coisa de Vaslav Nijinsky neste Taylor's Very Old Port, um vinho profundo, sedutor e verdadeiramente apaixonante!!!
Uma palavra também para a organização, várias coisas melhoraram, comparativamente às edições anteriores, o preço é certo que subiu, mas também limitaram proporcionalmente (e bem) as entradas, desta forma foi muito fácil percorrer todos os espaços, evitando as filas (quer para os para os vinhos quer para a comida), tudo isto para que se proporcionasse um ambiente descontraído, mas com classe.
Voltando ao modo como iniciei esta publicação, que o vinho continue a unir aquilo que as balas separaram, sejam elas feitas de metal, palavras ou atitudes e que (pelo menos) no Natal não nos falte a alma generosa, fraterna e condescendente dos soldados da Frente Ocidental da Primeira Guerra Mundial, do pequeno Fritz e da sua mãe. Até para o ano, no sitio do costume, para celebramos todas estas histórias que fazem o Natal, com um copo de vinho na mão, vinho esse que por vezes, assistiu escondido na garrafa a todos esses acontecimentos!!!