Toca da Raposa | Afinado desconcerto
"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!". Florbela Espanca
Antes de começarem a dizer que sou piegas, aviso que não vejo a poesia de Florbela Espanca como a maior parte das pessoas a lê. É certo que a sua vida não foi fácil, nasceu ilegítima, sendo só postumamente reconhecida pelo pai. Casamentos teve três, divórcios dois e inúmeros relacionamentos falhados. Há ainda a morte inesperadamente violenta do irmão, dois abortos - os filhos que não teve, problemas pulmonares, e uma doença mental hereditária, que lhe provocava insónias, enxaquecas e esgotamentos constantes. No final da vida começou a consumir um barbitúrico, Veronal, ao qual se socorreu para se suicidar no dia do seu aniversário e do seu casamento (8 de Dezembro).
Apesar de tudo isto, Florbela deixa-nos como legado alguns dos mais belos poemas ligados ao erotismo (é tida por muitos como a mulher que deu voz ao desejo), à feminilidade, ao amor, à paixão, à inocência e à beleza das coisas simples e desconcertantes. E é aqui que faço a ponte com o Toca da Raposa. Um restaurante no Douro, com a alma do Douro, carregado pelas gentes do Douro, cujo sonho é materializado numa cozinha que se baseia nos produtos locais e se constrói com memórias, numa aparente simplicidade e no amor pela terra.
O interesse de o visitar surgiu das inúmeras e incessantes recomendações de vários amigos («tens de ir ao Toca da Raposa!!!») e cresceu com a troca de e-mails bastante amiga e simpática com o proprietário Fernando Gomes. Logo "ali" deu para perceber que aquele sitio era diferente. Viríamos a ter uma das maiores surpresas gastronómicas da história do blogue.
A cozinha está entregue a Maria da Graça (mãe do Fernando), uma lenda viva das terras durienses, com talento, conhecimento e afecto. Na sala, a filha Rosário (irmã do Fernando e filha de Maria da Graça), é porta-voz apaixonada dos saberes e histórias ancestrais desta região. Foi verdadeiramente um prazer, sorte, e privilégio ter bebido com ela algumas dessas narrativas.
Fomos recebidos com frutos secos no forno, queijo de cabra marinado em azeite e pão rústico frito acompanhados pelo mel, damasco, compota de maçã e canela do Quevedo Porto branco seco (87 pts.). E a partir daqui, meus amigos, começa o delicioso e afinado desconcerto: Milhos de moira com grelos harmonizado com o maracujá, limão, pimenta branca e notas florais do Claudia’s Reserva Branco (90 pts.).
Um clássico do Douro com milho moído, enchidos e grelos, materializado numa monumental epopeia sobre memórias e sabor. Um prato intenso, voluptuoso e rico, que me fez recordar os dias de menino, em que passava no inverno na aldeia, povoada de frio, nevoeiro, cheiros, sons e sensações.
O arroz de cabrito foi das melhores "coisas" que provei neste ano, merece por si só a viagem. Uma espécie de risotto de cabrito crocante ... desconcertante. Uma camada crocante e ligeiramente fumada protege um interior suculento, complexo e rico. A cada garfada a Bia repetia vigorosamente: «mais arroz» ;) Um prato que merece ser degustado com tempo, conversa e boa disposição. Foi acompanhado pelo Oscar’s Tinto 2017 (88 pts.) e as suas ameixas vermelhas, morangos e cacau.
Antes dos doces: Ensopado de javali. Um prato guloso, intenso, saboroso e cuja confecção conduziu a pedaços de carne untuosos, ricos, a desfazerem-se no prato e incrivelmente macios. A carne era tão leve que quase que não era necessário mastigar. Rico, aromático, levemente doce, que quando conjugado com os legumes amanteigados, se assume como uma criação que ainda hoje me faz salivar.
Cresceu muito com as groselha, amoras, esteva, chocolate preto, tabaco e especiarias do Claudias Reserva Tinto 2015 (90 pts.) Um grande vinho, elegante, fresco e complexo. Depois, era chegada a hora de ver in loco a labuta de um dos pares de mãos mais talentosos do Douro, o de Maria da Graça. Andam atrás do seu conhecimento, memórias, receitas e saberes ancestrais, inúmeros restaurantes, hotéis e empresas ligadas ao sector da alimentação, iríamos perceber mais tarde ... o porquê desta popularidade ;)
Bola de amêndoa e gelado de nata com amêndoa, Bolo preto, e Bolo borrachão foram as deliciosas propostas para a sobremesa. A bola parece um pão-de-ló húmido, rico e intenso, conjugado com a "crocância" das amêndoas e frescura do gelado. Já o bolo preto emanava um aroma inebriantemente perfumado com a excentricidade da canela, do Porto velho e do açúcar amarelo. No entanto, a minha gulosa atenção estava virada para o bolo borrachão, um hino à comida de conforto: fresco, doce, intenso e gordo.
Feito com vinho do Porto velho (mais de 30 anos), passou a ser a minha sobremesa favorita (desculpa Abade de Priscos, temos de falar, o problema não és tu, sou eu. Vamos guardar com carinho tudo o que de bom aconteceu entre nós ;)). Foi magistralmente acompanhado pelo Quevedo Tawny 20 anos (92 pts.). O caramelo, as nozes, as amêndoas, o melaço, o cardamomo e o surpreendente coco tornaram este final de almoço ... inesquecível.
Aprendi neste dia que, como Florbela, o Toca da Raposa não busca mais a conformidade da igualdade, mas, muito pelo contrário, anseia o estranhamento e a inconformidade da singularidade da alma, dos produtos e das memórias gastronómicas do Douro. Porém, contrastando com a maior poetisa portuguesa, já perceberam que irei sentir saudades, sei lá de quê, mas muito provavelmente da melodia de um afinado desconcerto em forma de bolo ;)
Até à próxima, porque este é um daqueles sítios, dos quais não conseguimos ficar longe muito tempo.
Fernando Gomes, obrigado pelas palavras amigas, numa hora "complicada". É como dizes: A memória e o sorriso de felicidade dos que partem permanecem em nós como boas memórias ;)