Vila Galé Braga | O berço segundo S. Marcos
"Tudo é pequeno e transitório neste mundo, excepto a humanidade, a cadeia ininterrupta, por onde as sucessivas gerações vão aprendendo, transmitindo e acrescentado a reliquia comum da civilização." José Latino Coelho
S. Marcos, o Evangelista, é o autor do primeiro evangelho escrito, o Evangelho de S. Marcos, que apareceu cerca de 30 anos após a crucificação de Jesus Cristo (no final do ano 60). É um santo historicamente importante, quer como escritor do Evangelho mais antigo, quer como santo padroeiro de Veneza. S. Marcos não foi um dos 12 apóstolos iniciais, mas fez parte do grupo mais alargado de 70 discípulos a quem Jesus pediu ajuda na divulgação da Sua palavra.
A tradição cristã afirma que S. Marcos nasceu em Jerusalém e que foi um dos criados que serviu no casamento em Caná da Galileia, aquele em que Jesus Cristo transformou água em vinho (o primeiro sinal, pouco discutido, que Aquele "tipo" era mesmo porreiro ;)).
Depois passou por Chipre, Éfeso e Roma onde ajudou S. Paulo a espalhar a sua fé, até que mais tarde fundou a Igreja cristã no Egipto, tornando-se bispo de Alexandria, um importante centro de comércio, cultura e poder político dos tempos antigos. S. Marcos morreu, violentamente, aos 54 anos, algures entre os anos 68 e 74, como mártir, no dia da Páscoa, durante o sacrifício da missa, tendo o seu corpo sido arrastado por uma parelha de cavalos pelas ruas de Alexandria, durante três dias, até desaparecer.
Uns anos mais tarde, comerciantes venezianos provenientes de Alexandria, transportaram as relíquias do santo (objectos pessoais preservados para efeitos de veneração) no ano de 828, ficando a partir daí como padroeiro da cidade de Veneza. Há quem defenda que parte destas relíquias, foram sorrateiramente desviadas para Portugal, mais concretamente para Braga.
Na Igreja do Hospital também conhecida por Igreja de São Marcos, perto do altar mor, existe um sarcófago que se diz conter algumas das relíquias do evangelista S. Marcos trazidas para Braga, no século XI, pelo arcebispo Maurício Burdino, embora exista, para não variar, outra versão que defende que o responsável por este feito foi o cavaleiro templário D. Gualdim Pais, na segunda metade do século XII.
O certo é que no espaço onde existe nos dias de hoje a igreja de São Marcos e o hotel Vila Galé Collection Braga havia uma albergaria e convento da Ordem dos Templários. A partir de 1312 surgem alguns textos que referem a presença das relíquias de S. Marcos por aquelas bandas. Em 1508 os antigos edifícios são reconvertidos no Hospital S. Marcos de Braga por D. Diogo de Sousa.
Em 2011 o Hospital de S. Marcos é desocupado devido à inauguração de um novo hospital público na cidade dos arcebispos. Felizmente, todo este legado de memórias, ganha nova vida em 2018 através do Vila Galé Collection Braga, hotel que é contiguo à igreja S. Marcos. No interior do hotel há um corredor que permite contemplar o interior da igreja e o altar mor, com as respectivas relíquias.
A coabitação entre esse património histórico de valor incalculável, o extremo bom gosto na adição de detalhes contemporâneos, a serenidade dos espaços, o ambiente "tropical" da zona das piscinas e um serviço exemplar, fazem com que o Vila Galé Collection Braga seja muito especial e tenha uma alma muito própria, terrivelmente sedutora.
Celebra, de forma muito bonita e autêntica, temas como a fundação de Portugal, a história dos arcebispos e a própria vida de D. Diogo de Sousa. Curiosamente, na suite em que ficámos (número 106), encostada à Capela de S. Bentinho (um local de grande devoção), crê-se que D. Diogo lá pernoitou. Todos os quartos do hotel são adornados por tons roxos relembrando os trajes dos arcebispos que foram dirigindo os destinos da arquidiocese da cidade, ao longo dos últimos séculos.
O hotel contém ainda detalhes históricos fascinantes... Uma réplica da Cruz de Cristo utilizada na primeira missa celebrada no Brasil, uma tela funerária de homenagem a um escravo do tempo dos romanos e as placas de 1919 (terrivelmente actuais) em memória do pessoal hospitalar vítima de epidemias no exercício da profissão.
Há ainda "modernidades" óbvias e importantes, que fazem uma bela ponte com o passado, como as diversas salas de reunião, os tratamentos de spa, o ginásio, a piscina interior aquecida, as piscinas exteriores (para adultos e crianças) com bar de apoio, para além de um parque infantil que é a alegria da pequenada. Onde antigamente se localizava a capela do hospital foi construída a adega Santa Vitória onde os vinhos são guardados e onde se podem celebrar jantares especiais.
Foi ainda criado o bar Euforia e dois restaurantes. O Fundação, com serviço buffet, e o Bracara Augusta, à carta. Para mim este último, é, de longe, o melhor restaurante de Braga. Tivemos o prazer de jantar no claustro com jardim que serve de esplanada.
Iniciamos a degustação com uma Amuse-bouche: Bacalhau algarvio em cama de agrião com redução de vinagre balsâmico e azeitona desidratada. Marítimo, vegetal, untuoso, fresco e fumado. Teve o condão de despertar as diferentes zonas do palato para o que se seguiria...
O nosso Caldo Verde: É preparado na mesa, sendo os diferentes elementos, inicialmente separados, combinamos à vista dos comensais. Cada colher carregava todo o sabor do típico caldo português, desde a couve até à batata, passando pelo chouriço.
Ao fecharmos os olhos não imaginamos que temos à frente uma versão gourmet e teatrilizada do caldo verde. Complexo, voluptuoso e intenso, o aroma que emanava daquele prato parecia saído de uma panela com o caldo a ser agitado enquanto era preparado.
Os tentáculos do Polvo à Lagareiro, cozinhados no forno com grelos, alho e bom azeite estavam crocantes por fora, quase que levemente fumados, e por dentro gulosamente tenros e suculentos, uma delicia...
Seguiu-se o Naco de novilho com legumes grelhados e esmagada de batata que escondia um suco delicioso carregado de untuosidade, gosto e luxúria. Os acompanhamentos acrescentaram frescura, elegância, surpresa, texturas e largura aromática.
Um prato que termina com sabores verdes e da terra, num doce gordo quase floral, numa adstringência e numa voluptuosidade, que nos pincelaram o palato de uma forma muito agradável.
Nas sobremesas destaco o Crocante tépido de mexidos com redução de vinho do Porto (isto apesar do fondant de chocolate estar irrepreensível). Passeia-se na boca entre o quente e o frio, numa experiência glorifiada pela canela. É muito saboroso, bem pensado e estrategicamente ponderado, como uma roda-viva de sensações e texturas que celebra o final da refeição.
Por tudo isto, é fácil perceber que o restaurante está assente no receituário tradicional português, mas com uma apresentação tão moderna quanto original. Uma cozinha de autor, que merece, por si só, uma visita.
Curiosamente, o edifício no qual durante 5 séculos, a maioria dos bracarenses teve o seu primeiro berço, adquiriu agora uma nova "cara", promovendo uma bela evocação de uma boa parte do legado histórico da cidade, num hotel que oferece, também, um berço para os turistas que a visitam. Isto sim, é uma relíquia ;) Se o Vila Galé Braga não é um bom exemplo do aproveitamento da iniciativa privada na gestão do património público abandonado, não sei o que será. Parabéns!!!