Vinhos Herdade Grande | No final ... sobrevivem os dois
"Nem tudo o que é ouro é luz!!!" Fernando Pessoa
Definiria um carácter do vinho como um "sentimento de pertença" ao local que lhe deu origem, e é uma das principais características que um enófilo procura/deve procurar num vinho. Mais do que aquilo que a palavra francesa terroir transmite, o carácter engloba tudo o que envolveu uma agricultura consciente, uma colheita precisa, uma fermentação cuidadosa e um estágio e/ou envelhecimento consciente.
Estes vinhos opõem-se conceptualmente ao sumo de uva insípido, produzido em massa, quente e com excesso de carvalho que revestem as prateleiras dos nossos hipermercados (é claro que lá também podemos encontrar honrosas excepções).
Se enquanto descobrimos os aromas, percebemos a cor, sentimos a frescura, avaliamos os taninos e preenchemos o palato com sabores complementares, distintos e auxiliares, relacionarmos tudo isso com o tal "sentimento de pertença" a um lugar, elevamos aquilo que bebemos, de uma "simples" bebida a uma musa organoléptica ... quase poética.
É por isso que um Alvarinho do Minho deve, forçosamente, ter um sabor diferente de um do Douro, do Dão ou do Alentejo. Esse carácter deveria ser quase como um "cartão de identidade" do vinho, uma mensagem, onde enólogo nos transmitia: "Este é o meu vinho, fi-lo com engenho, coração e carinho (hoje não paro de rimar, tenho de ver o que se passa com as minhas sinopses :P). "É único e muito especial, eu gosto, espero que gostem também."
Com um espírito mais engenhoso, generoso e fantasioso (tenho mesmo de entrar para os rimadores anónimos ;)), o "sentimento de pertença" que um vinho nos transmite é também uma óptima metáfora para a forma verdadeiramente encantadora com que um grande vinho nos leva a viajar pelos recônditos mais íntimos da nossa própria imaginação.
Mas (e nas boas crónicas há sempre um mas) este carácter tem uma arqui-inimiga: a moda. Moda essa que já foi a Parkerização dos vinhos (muita madeira, muito álcool, muita extracção) e que agora parece ser a Jet-setificação dos vinhos onde as palavras de ordem passaram a ser baixo teor alcoólico, pouca extracção e elegância (nem que para isso se tenha de colher demasiado cedo ou corrigir a acidez natural no vinho, levando, em alguns casos, à produção de vinhos completamente desequilibrados).
Por incrível que possa parecer, há produtores que conseguiram passar de uma moda a outra, em menos de dez anos, e com as mesmas vinhas, é obra... Porém, existem outros, como a Herdade Grande, cuja única "moda" que sempre seguiram foi a do carácter. Quanto à elegância? A singularidade de um bom terroir trata dela. É sobre os vinhos desta herdade que hoje vos vou falar, um deles enorme!!!
Começo pelo amarelo-citrino Herdade Grande Roupeiro Vinhas Velhas 2020 (17.00 €, 90 pts.) e os seus delicados aromas a flores silvestres, loureiro, pera, pêssego e alguma lima. Na boca é fino, fresco, pedregoso (pedra molhada), irreverente e harmonioso. Ainda nos brancos o Herdade Grande Grande Reserva Branco 2018 (18.50 €, 90 pts.), de porte citrino, exibe pitaya, toranja, limonete e tosta. No palato é elegante, complexo, equilibrado, longo e untuoso. Foi enorme a acompanhar o Camarão Tigre Gigante com noodles de ameijoa e creme de marisco.
Gostei muito do Herdade Grande Sousão Tinto 2018 (17.00 €, 90 pts.). É rubi denso no copo e no nariz mostra violetas, grafite, mirtilos, bolacha de canela e uma tosta bem integrada. Na boca pede comida (acompanhou um Naco de maronesa, redução de vinho tinto, legumes ao vapor e frutos secos) e tem uma acidez acutilante, é rústico, complexo e muito longo.
O Herdade Grande Grande Reserva Tinto 2018 (30.50 €, 93 pts.) de porte rubi grená, emana compota de frutos silvestres, mirtilos, cacau, violetas, baunilha, tosta e pimenta preta. No palato exibe taninos aguerridos, intensidade e uma acidez inquieta que lhe dá muita finesse (apesar da estrutura taninica muito elevada). É daqueles que vai crescer, muito e bem, em garrafa.
Para último, dois vinhos de nicho, os Amphora. O Herdade Grande Amphora Branco 2019 (25.00 €, 91 pts.) é delicioso. Começa a seduzir logo no copo com o seu tom âmbar dourado cristalino (como diz Pessoa nem tudo o que é ouro é luz, por vezes parece ser vinho ;)) para mais tarde nos conquistar com as suas notas de fruta cristalizada (ananás e casca de tangerina), papaia, damasco, algum melaço, pinho e uma pedregosidade evidente. No palato tem uma estrutura crocante e é untuoso, rico, denso e equilibrado.
O seu "parente tinto", o Herdade Grande Amphora Tinto 2019 (25.00 €, 90 pts.), passeia-se com uma bonita cor rubi pouco intensa, soltando notas de frutos silvestres, uvas passas, cogumelos, caixa de tabaco, tosta e um subtil caril. Na boca é equilibrado, elegante, estruturado e tem um enorme carácter.
No final da prova, e em todos estes vinhos, sobrevivem os dois ... carácter e elegância. ;)
O titulo da publicação é baseada no livro de Adam Silvera, No final morrem os dois, que esmiuça temas tão distintos como as redes sociais, a morte e a sexualidade. Quando o acabar, falo-vos sobre ele ... a propósito de algum vinho, de algum restaurante, de algum hotel ou "apenas porque sim"!!! :P