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No meu Palato

No meu Palato

Vinhos XXVI Talhas | O carpinteiro que parou o tempo

"Escava dentro de ti. É lá que está a fonte do bem, e esta pode jorrar continuamente, se escavares sempre. Mas tudo isto revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais isento de ruídos, que na alma." Marco Aurélio

Mestre DanielO vinho cresceu sempre de mãos dadas com o barro, ao longo de milénios. Este sedimento facilmente maleável, existente em todos os continentes e ao alcance de quase todos os povos, aliou-se, umbilicalmente ao sucesso do elixir dos deuses. Essa união, virtuosa, dura até os dias de hoje, dando origem a vinhos que procuram a originalidade olhando para o passado, com olhos postos no futuro. Vinhos que procuram encontrar a sua máxima expressão mediterrânica na conjugação entre a argila e a uva. Mas como surgiu este "casamento feliz"?

Mestre DanielA história diz-nos que os primeiros reservatórios vínicos foram construídos em barro no Neolítico. Naquele preciso (e precioso) momento em que os humanos começaram a domesticar animais, cultivar plantas e a estabelecer-se de forma mais ou menos estável nas primeiras aldeias, vilas e cidades. O acaso, ou talvez mais que isso, fez com que esses reservatórios de barro fossem encontrados na Geórgia, não muito longe do Monte Ararat, onde, segundo a Bíblia, Noé, afortunadamente, após o dilúvio, plantou a primeira vinha.

Mestre DanielEm Gora, a sul do Cáucaso, actual Geórgia, investigadores da Universidade da Pensilvânia encontraram vestígios de vinho (até hoje os mais antigos), em potes de barro de há 8.000 anos. Esses recipientes, com um metro de altura e com capacidade para cerca de 300 litros, teriam sido utilizados no processo de fermentação das uvas cultivadas perto dos assentamentos onde as pessoas de então viviam. O vinho, usado como remédio, como alucinogénio ou simplesmente como alimento, espalhou-se mais tarde por todo o Oriente.

Mestre DanielO barro, especialmente na forma de ânfora, devido à sua resistência mecânica, impermeabilidade e facilidade de transportar/esvaziar/armazenar tornaram-no na forma padronizada do mundo antigo transportar vinho. Esses vasos de cerâmica revestidos de cera (cera de pinho e de abelha eram muito comuns) foram gradualmente adoptados por quase todas as civilizações bebedoras/produtoras de vinho, nas regiões do Mediterrâneo e da Mesopotâmia, atingindo o pico de utilização na Grécia e Roma antigas, onde o vinho se começou a tornar naquilo que é hoje.

Mestre DanielEm Portugal a ânfora é conhecida por talha e chegou ao nosso território através dos romanos. No ano 60 AC, Julio César, o então general e futuro imperador romano, marchou com 30 mil soldados para a Península Ibérica, conquistando-a. Surge aí a Lusitânia romana que incluía quase todo o actual território português a sul do rio Douro, mais a Estremadura espanhola e parte da província de Salamanca, que ficou sob controlo romano até à entrega aos Alanos em 411. Júlio César após esta sonante conquista, regressa a Roma, torna-se imperador e corteja Cleópatra (coloquei os acontecimentos por ordem crescente de relevância :). Outros romanos, ficaram por cá, e ainda bem... ;)

Mestre DanielEnquanto Júlio César conhecia os cantos às pirâmides (;)), os seus conterrâneos deixavam para trás, naquilo que hoje é Portugal, muitos apontamentos arquitectónicos, cultura, artefactos, comida, vinho e modo como o fazer e armazenar: a talha. Em Portugal, o Alentejo tem sido o grande guardião dos vinhos de talha, tendo sabido preservar até aos dias de hoje este processo de vinificação desenvolvido pelos romanos, sendo mesmo, com a excepção da Geórgia,  a única região do mundo com uma história tão longa na produção deste tipo de vinhos.

Mestre DanielProduzido em talhas ou em potes, herdeiros das grandes vasilhas romanas, o vinho de talha, tanto o branco como o tinto, resulta de um processo de fermentação que acontece juntamente com a massa vínica, na gíria designada "mãe", onde este vinho permanece, pelo menos, até ao dia de São Martinho (11 de Novembro), adquirindo aí as características que o distinguem de todos os outros vinhos. Neste dia, as adegas enchem-se de gente, da terra e de fora, que para ali se deslocam para conviver e provar o vinho da nova colheita, que sempre gozou de grande fama na região. Para além do aroma característico das adegas, é também inspirador o cantar do vinho no alguidar, no jarro ou mesmo no pequeno copo, que se vai encher, uma e outra vez, directamente à talha.

Mestre DanielInfelizmente, nos últimos anos, esta prática tem-se vindo a reduzir drasticamente. Sentindo a responsabilidade de dar continuação a este legado milenar,  um grupo de amigos, naturais de Vila Alva, juntou-se para criar o XXVI Talhas, reactivando a antiga adega do Mestre Daniel, com 26 talhas, onde produzem vinho de talha segundo os métodos tradicionais. Daniel António Tabaquinho dos Santos (1923-1985) para além de produzir vinho, utilizava também este local para trabalhar como carpinteiro e, por esse motivo, era conhecido localmente como o "Mestre Daniel". 

Mestre DanielO Mestre Daniel produziu vinho de talha durante 30 anos, seguindo a tradição familiar que herdou de seus pais e avós. Após a sua morte seguiram-se ainda alguns anos de produção. Contudo, em 1990, a adega encerrou actividade. Em 2018, após quase trinta anos de interregno, a adega volta a funcionar, pelas mãos do XXVI Talhas, retomando a tradição local e familiar de produção de vinho de talha. É sobre os vinhos que de lá saem que vos vou falar hoje...

Mestre DanielComeçando pelo XXVI Talhas Mestre Daniel Branco 2019 (87 pts., 20 €), de cor citrina-âmbar cristalina exibe no nariz muita rusticidade, pureza e autenticidade com casca de laranja cristalizada, xila, papaia, calda de ananás e uma mineralidade muito vincada (granito molhado). Na boca é seco, fresco, directo e surpreendentemente esguio. Nos tintos, o rubi XXVI Talhas Mestre Daniel Tinto 2019 (88 pts., 20 €) emana compota de morango, frutos silvestres, pimento vermelho, alfarroba e sous-bois. Todos estes aromas são confirmados no palato, fazendo-se notar ainda uma agradável secura, uma acidez bem integrada e um final guloso, longo e elegante. 

Mestre DanielPara acompanhar um Coelho agridoce com frutos secos e arroz basmati escolhi o XXVI Talhas Mestre Daniel Talha Tinto 2019 (91 pts., 35 €). Com uma cor rubi muito bonita e levemente pálida, carrega notas deliciosas a amora, compota de mirtilo, bergamota, erva seca, pinho, cogumelos, sous-bois e uma mineralidade intrigante (granito partido). Na boca não é tão seco como os anteriores,  é muito complexo, super equilibrado, dócil, elegante e muito longo. Gostei muito. No conjunto achei os vinhos XXVI Talhas muito originais, com pedigree, com alma, com memória, com autenticidade e com simplicidade de espírito, sem ruídos, e que por tudo isto, exprimem, de forma indelével, o terroir e o legado que carregam desde o berço.

Mestre DanielNum pequeno caderno de apontamentos encontrado na adega do projecto XXVI-talhas, o “Mestre Daniel”, descreve assim o seu fabrico: “...quando se começa a fazer o vinho novo, esmaga-se as uvas brancas ou tintas numa ciranda ou num moinho esmagador. Depois deita-se a massa da uva e o mosto na talha dando-se-lhe primeiro uma mecha boa; não deixar a talha cheia demais para não entornar... Mexe-se duas vezes ao dia de manhã e à noite até baixar a fermentação e depois pode-se mexer só uma vez por dia. O tempo de fermentação depende das uvas... isto é como se faz o vinho.”

Uma receita que faz parar o tempo com olhos postos no futuro e viajar ao passado, passando, agradecidamente pelo Mestre Daniel, estoicamente pelos Lusitanos, marotamente por Júlio César e Cleópatra até chegarmos, nostalgicamente, aonde tudo começou, na Geórgia. 

 

Coelho agridoce com frutos secos e arroz basmati:

-Alourem o coelho em azeite, alho e um pau de canela, temperando com sal e pimenta;

-Retirem o coelho da frigideira, separem a carne dos ossos, pele e cartilagem e voltem a introduzir a carne na frigideira, cozinhando durante mais cinco minutos;

-Adicionem mel, brandy, vinagre de vinho Madeira e sumo de limão. Cozinhem durante 5 minutos, retirem do calor e adicionem alguns amendoins com sal;

-Sirvam com arroz basmati aromatizado com anis acompanhado por algumas nozes.